A exploração de trabalhadores migrantes e os instrumentos de proteção
BOLETIM 2022 | #6
A exploração de trabalhadores migrantes e os instrumentos de proteção
Não obstante a presença de legislação antiesclavagista em muitos países, os trabalhadores migrantes são vítimas de empregadores e de intermediários que os exploram, tais como as agências de recrutamento e os gangmasters (engajadores sem escrúpulos). As suas debilidades económicas, juntamente com a proliferação do trabalho irregular e não declarado, permitem que as organizações criminosas e os empregadores perpetuem o tratamento ilegal dos trabalhadores migrantes.
Hoje em dia, os criminosos utilizam meios enganosos com o objetivo de manter cativa a sua força de trabalho, e de a explorar. Os trabalhadores migrantes são explorados mediante táticas de controle, tais como a cobrança de taxas extorsivas de recrutamento, de dívidas, de ameaças de violência, de prisão e deportação, da retenção de salários, da apropriação ou da destruição de documentos. Esta condição de submissão pode dar origem à privação da liberdade, ao trabalho forçado e excessivas horas de trabalho, a salários injustos, locais e condições de trabalho inseguros.
A pandemia de COVID-19 colocou aqueles que já se encontravam em elevado risco de exploração, num perigo ainda maior. Por um lado, a crise amplificou os principais motores da escravidão moderna, tais como a pobreza e a crise financeira. Por outro lado, os trabalhadores migrantes mergulhados já em situações de vulnerabilidade, viram a possibilidade de se movimentar ainda mais restringida, foram sujeitos ao isolamento e à exclusão de adequados serviços de saúde e de assistência social, sendo demitidos e sofrendo cortes nos salários.
Este Boletim faz um apelo para que todos os trabalhadores migrantes tenham direitos como trabalhadores, independentemente do seu estatuto de imigração. Efetivamente, permanecem lacunas cruciais no sentido de prover à proteção dos vulneráveis e à apreensão dos criminosos. Contudo, este Boletim apresenta algumas boas práticas e testemunhos que promovem a proteção dos migrantes e a adoção de normas e medidas que possam monitorizar as suas condições de trabalho, normas e direitos.
Empoderar, proteger e promover os trabalhadores migrantes
Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco colocou o tráfico de seres humanos no centro do seu magistério. Citando Génesis 4:9 na sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013), ele pergunta: “Onde está o teu irmão escravo?”. E com palavras duras, enfatiza: “A pergunta é para todos! Nas nossas cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as suas mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade”.
Posteriormente, na sua mensagem de vídeo aos participantes no Fórum Internacional sobre a Escravidão Moderna, o Papa Francisco afirmou que: “Não nos é permitido olhar para o outro lado e declarar a nossa ignorância ou inocência”. Depois, ao dirigir-se aos Estados e às Organizações Internacionais, exortou-os a não se limitarem a punir os responsáveis, mas a abordar as raízes mais profundas do problema. “A principal resposta consiste em criar oportunidades para um desenvolvimento integral, a começar por uma educação de qualidade”, explicou. Por fim, fez um apelo às Igrejas uma vez que todos os cristãos são chamados a superar “todos os tipos de desigualdade e discriminação, pois são precisamente elas que tornam possível que um homem escravize outro”.
Durante uma reunião de alto nível sobre a avaliação do Plano de Ação Global das Nações Unidas para o Combate ao Tráfico de Seres Humanos, o Núncio Apostólico e Observador Permanente da Santa Sé junto das Nações Unidas, Arcebispo D. Gabriele Caccia, utilizou palavras relevantes acerca do progresso realizado e do progresso ainda por construir (IN) no que respeita a este assunto. De modo particular, ele acentuou que, anualmente, cada vez mais traficantes estão a ser conduzidos à justiça, e “um número crescente de países criminalizou o tráfico, de acordo com o Protocolo sobre o Tráfico de Seres Humanos da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.” Além disso, as parcerias entre os Estados e as partes interessadas devem ser reforçadas e constituir a base para uma cooperação concertada entre as autoridades locais, os governos nacionais e as organizações religiosas. A este respeito, o Arcebispo Caccia sublinhou o “impressionante trabalho levado a cabo pelas Irmãs Religiosas, a nível internacional, nacional e local.”
Por ocasião do Dia Internacional da Oração e Consciencialização contra o Tráfico de Seres Humanos 2021, a Caritas Internationalis convidou todos os seus membros a engajar-se na luta contra este crime (ES, EN, FR) e instou os governos a fortalecer os serviços de proteção e de apoio às vítimas, e a estabelecer planos nacionais de combate ao tráfico. Como o Papa Francisco nos chamou a fazer, afirmou o Secretário-Geral Aloysius John, devemos ser “promotores de uma economia do cuidado”, que “cuide do trabalho, criando oportunidades de emprego que não explorem os trabalhadores através de condições degradantes e de horas de trabalho extenuantes”. A Caritas Internationalis também fez um apelo aos governos, para que tomassem medidas concretas de modo a prevenir o tráfico de seres humanos e a proteger os que sofrem este crime.
As boas práticas de agentes católicos
Dirigindo-se à Conferência Internacional do Grupo Santa Marta em maio de 2022, o Papa Francisco enfatizou a “necessidade essencial de apoiar, acompanhar e reintegrar as vítimas do tráfico de seres humanos nas nossas comunidades, e de as ajudar no processo de cura e de recuperação da sua autoestima”. A seguir, encontram-se alguns exemplos do compromisso que agentes católicos desenvolvem neste esforço.
Em Hong Kong, a Missão para Trabalhadores Migrantes (EN, MFMW) da Catedral de S. João oferece assistência a mais de 380 mil trabalhadores domésticos estrangeiros. Muitos deles encontram-se mal pagos, sobrecarregados de trabalho, cativos no ciclo vicioso da dívida e da discriminação, ou são vítimas de abuso físico e sexual. Os principais serviços da Missão (MFMW) incluem o facultar orientação e informações, apoiar os diversos casos que surgem, proporcionar abrigos, e outro tipo de socorros e de assistência de emergência a trabalhadores domésticos estrangeiros em dificuldades. Para além disto, oferecem um Treino de Responsabilidade & Conheça os seus Direitos de maneira a ajudar os trabalhadores domésticos a entender e a exercer os seus direitos no contrato, bem como Seminários e Formação sobre Competências Laborais e de Vida. Por fim, a Missão treina grupos e organizações de migrantes a implementar programas de bem-estar e a melhorar o cuidado e o apoio mútuos entre os migrantes e as suas comunidades.
Equipadas com conhecimentos e competências de advocacia, as Freiras que se encontram espalhadas pela Zâmbia, advogam contra o tráfico de seres humanos (EN). As Irmãs têm apresentado programas de rádio e proporcionado debates, bem como conferências de imprensa para terminar com o silêncio que circunda as estruturas e as situações que perpetuam e sustentam este crime. As Irmãs também envolveram o governo, realizando visitas aos ministérios governamentais, e pedindo que protegessem quer os zambianos, quer todos aqueles que cruzam as fronteiras do país através do tráfico de seres humanos. Elas também se comprometeram a organizar seminários de consciencialização nas suas comunidades e instituições, de modo a proporcionar aconselhamento às vítimas resgatadas e a encontrar maneiras de as reintegrar como membros produtivos da sociedade.
O Centro Rerum Novarum (EN), em Taiwan, pertence à Companhia de Jesus e providencia asilo a trabalhadores migrantes maltratados pelos seus empregadores, incluindo mulheres que foram abusadas ou levadas à exaustão, quer mental, quer fisicamente. O Centro dispõe ainda de uma linha telefónica de apoio em diferentes línguas, e de uma sessão de formação aos domingos, a qual oferece aos trabalhadores migrantes informação e assistência jurídica, acompanhamento em questões de saúde, apoio psicológico, negociação salarial e outro tipo de serviços qualificados, com vista a sensibilizar as consciências no que respeita às questões relacionadas com o trabalho. Após o processo de digitalização, os trabalhadores migrantes em Taipei receberam um “cartão eletrónico de trabalhador migrante urbano” (EN) graças ao qual eles podem ter acesso a toda a informação relacionada com problemas frequentes, bem como aos respetivos números para assistência.
A Rede Católica Australiana Contra o Tráfico de Pessoas (ACAN) auxilia entidades católicas a identificar e a gerir os riscos da escravidão moderna nas suas operações e cadeias de abastecimento. Entre outras iniciativas, apresentou um “Programa de Gestão de Risco da Escravidão Moderna” (EN) que visa projetar e implementar um processo que identifique e mitigue os riscos operacionais da escravidão moderna. Para alcançar este objetivo, a ACAN reúne entidades católicas a fim de compartilhar recursos e coordenar ações. O objetivo final é auxiliar entidades católicas e quadros superiores na preparação de Declarações Anuais sobre a Escravidão Moderna, como exige a Lei da Escravidão Moderna da Commonwealth de 2018. Para além disto, a ACAN lançou um programa de consciencialização sobre a escravidão moderna adaptado à indústria da construção – o programa Construindo Links (Building Links). Os empreiteiros principais são incentivados ‘a descarregar’, personalizar e usar uma formação on-line para supervisores do local de trabalho e um kit de ferramentas para conversas e cartazes (EN).
Histórias e testemunhos
No seu boletim eletrónico, a Sociedade Missionária de São Columbano relatou a história de um pescador indonésio chamado Ascuri (EN). Tal como milhares de outros trabalhadores migrantes indonésios pobres, Ascuri deixou para trás a sua esposa e os seus filhos na esperança de conseguir um trabalho num navio pesqueiro de alto mar. Ascuri trabalhava até vinte horas por dia em mar aberto, e foi agredido física e verbalmente. Após um ano de permanência no mar, ele descobriu que todo o seu salário tinha sido entregue à agência de emprego para cobrir os custos que despenderam no sentido de lhe procurar um trabalho, e para pagar as despesas de alimentação e de permanência no navio de pesca. Afortunadamente, ele foi encaminhado para o Centro de Serviços a Migrantes da Diocese Católica de Hsinchu a fim de obter ajuda. A equipa do Centro viabilizou-lhe aconselhamento e assistência jurídica, para além de o ajudar a arranjar um emprego seguro, e a encontrar um advogado para o auxiliar no seu processo judicial contra o seu traficante.
O Padre Ignatius Ismartono SJ, um jesuíta de 75 anos, é o diretor da Sahabat Insan (Amizade e Humanidade), uma organização jesuíta indonésia com sede em Jacarta, que lida com trabalhadores migrantes e vítimas de tráfico de pessoas. Numa entrevista à Agência Fides (EN, ES, IT, FR), ele relata a odisseia de muitos jovens, apanhados numa rede criminosa de intermediários nacionais e internacionais. “Começa com o recrutamento graças à cumplicidade de alguns funcionários corruptos dispostos a falsificar a idade deles. A seguir, com muita frequência, são enviados para o estrangeiro […] Um funcionário confisca os passaportes até ao momento em que a dívida com o mediador não se encontrar liquidada.” A Sahabat Insan está empenhada em prevenir o tráfico de seres humanos e em ajudar as vítimas da exploração. Neste esforço, a Associação Católica pode contar com a colaboração das Irmãs de Talitha Kum presentes no território.
Nesta entrevista (IN), a Irmã Annah (Theresa) Nyadombo, uma irmã carmelita e coordenadora da Talitha Kum do Zimbabwe, relata o seu trabalho contra o tráfico de pessoas. Ela vive esta experiência como uma oportunidade para “evitar todos os danos, abusos e enganos, e as promessas vazias”. Durante a sua experiência, ela ajudou sobreviventes do tráfico que tinham ido para o Kuwait, e que graças à ajuda do Governo puderam voltar, mas, ao regressar, precisavam de assistência e de auxílio. Apesar da falta de recursos, a Congregação Católica do Zimbabwe, trabalha com as vítimas e sobreviventes do tráfico de pessoas, especialmente com migrantes, defendendo boas leis e protegendo as pessoas. Na sua mensagem final, afirma: “Precisamos curar as vítimas através do aconselhamento, da meditação e do cuidado pastoral, acompanhando-as e fortalecendo-as. A capacitação também é importante para as ajudar a serem autossuficientes, fazendo crescer nelas capacidades para a vida.”
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