8 Dezembro 2014 | Mensagem

MENSAGEM DO SANTO PADREFRANCISCOPARA A CELEBRAÇÃO DOXLVIII DIA MUNDIAL DA PAZ1o DE JANEIRO DE 2015JÁ NÃO ESCRAVOS, MAS IRMÃOS

[…] Penso também nas condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do
seu trajecto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos
seus bens ou abusados física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados
ao destino depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança,
ficam detidos em condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que
diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas impelem a passar à
clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e
trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais
criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em
relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da
estadia ao contrato de trabalho… Sim! Penso no «trabalho escravo».[…]
[…] Não posso deixar de pensar a quantos, menores e adultos, são objecto de
tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como
soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou
venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional.[…]
[…] Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição da humanidade no outro –,
há outras causas que concorrem para se explicar as formas actuais de escravatura.
Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na
exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação
ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes,
oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas
que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando
crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que
gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias
informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do
mundo.
Entre as causas da escravatura, deve ser incluída também a corrupção daqueles
que, para enriquecer, estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico
das pessoas humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através
da corrupção dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de
outros actores do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto
acontece quando, no centro de um sistema económico, está o deus dinheiro, e não
o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou económico,
deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do
universo. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta
inversão de valores».[5] […]

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[…] 5. Quando se observa o fenómeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de
migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se
frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da
indiferença geral.
Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me
mencionar o enorme trabalho que muitas congregações religiosas, especialmente
femininas, realizam silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais
institutos actuam em contextos difíceis, por vezes dominados pela violência,
procurando quebrar as cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus
traficantes e exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis
mecanismos psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes,
através de chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também
através de meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a
violência física. A actividade das congregações religiosas está articulada a três
níveis principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e
formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.[…]
[…] As organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio
da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes
transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o
tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários níveis,
que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações
da sociedade civil e do mundo empresarial.
[…]Com efeito, as empresas[6] têm o dever não só de garantir aos seus
empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de
vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou
tráfico de pessoas humanas. A par da responsabilidade social da empresa, aparece
depois a responsabilidade social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria
ter consciência de que «comprar é sempre um acto moral, para além de
económico».[7][…]
[…] Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do
tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação,
multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos actores
unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.[8] Além disso,
foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade ao
fenómeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes actores,
incluindo peritos do mundo académico e das organizações internacionais, forças da
polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e
representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero
que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.
Globalizar a fraternidade, não a escravidão nem a indiferença
6. Na sua actividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na
sociedade»,[9] a Igreja não cessa de se empenhar em acções de carácter caritativo
guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o
caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro –

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seja ele quem for – um irmão e uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua
dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de
Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por
traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove
anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de
Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros,
especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os
séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança[10] para as
numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam
à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na
carne de Cristo».[11]
Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e
responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos
são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e
indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos
encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres
humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam
razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por
indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões
económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de
positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no
dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer
«bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos
custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa
que tacteia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta
realidade.[…]