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PAPA FRANCISCO ANGELUS

Depois do Angelus:
Caros irmãos e irmãs!
Há dois dias regressei da viagem a Chipre e à Grécia. Dou graças ao Senhor por
esta peregrinação; agradeço a todos vós a oração que me acompanhou, e às
populações daqueles dois amados países, com as suas autoridades civis e
religiosas, o afeto e a gentileza com que me acolheram. A todos repito:
obrigado!
Chipre é uma pérola no Mediterrâneo, uma pérola de rara beleza que, no
entanto, tem impressa a ferida do arame farpado, a dor de um muro que a
divide. Em Chipre senti-me em família; encontrei irmãos e irmãs em todos.
Conservo no coração cada encontro, especialmente a Missa no estádio de
Nicósia. Fiquei emocionado com o meu querido Irmão ortodoxo Chrysostomos,
quando me falou da Igreja Mãe: como cristãos seguimos caminhos diferentes,
mas somos filhos da Igreja de Jesus, que é Mãe e nos acompanha, nos protege,
nos faz ir em frente, todos irmãos. Os meus votos para Chipre é que seja
sempre um laboratório de fraternidade, onde o encontro prevaleça sobre o
desencontro, onde se acolhe o irmão, sobretudo quando é pobre, descartado,
emigrado. Repito que, diante da história, perante os rostos daqueles que
emigram, não podemos permanecer em silêncio, não podemos olhar para o
outro lado.
Em Chipre, como em Lesbos, pude ver este sofrimento nos olhos: por favor,
olhemos nos olhos as pessoas descartadas que encontramos, deixemo-nos
provocar pelos rostos das crianças, filhos de migrantes desesperados. Deixemos
que o sofrimento deles escave dentro de nós para reagirmos à nossa
indiferença; olhemos para os seus rostos, para despertarmos do sono do hábito!
Penso também com gratidão na Grécia. Também lá recebi um acolhimento
fraterno. Em Atenas senti-me imerso na grandeza da história, na memória da
Europa: humanismo, democracia, sabedoria, fé. Também ali vivi a mística do
conjunto: no encontro com os meus irmãos Bispos e com a comunidade católica,
na Missa festiva celebrada no dia do Senhor, e depois com os jovens que vieram
de tantos lugares, alguns de muito longe, para viver e partilhar a alegria do
Evangelho. E mais uma vez experimentei o dom de abraçar o querido arcebispo
ortodoxo Ieronymos: primeiro acolheu-me em sua casa e no dia seguinte veio
visitar-me. Conservo no coração esta fraternidade. Confio à Santa Mãe de Deus
as numerosas sementes de encontro e de esperança que o Senhor lançou nesta
peregrinação. Peço-vos que continueis a rezar para que germinem na paciência e
floresçam na confiança. […]

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A CHIPRE E À GRÉCIA (2-6 DE DEZEMBRO DE 2021) VISITA AOS REFUGIADOS DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Queridos irmãos e irmãs,
obrigado pelas vossas palavras! Agradeço-lhe, Senhora Presidente, a presença e
as suas palavras. Irmãs, irmãos, vim de novo aqui para vos encontrar. Estou
aqui para vos certificar da minha proximidade, e faço-o com o coração. Estou
aqui para contemplar os vossos rostos, para ver-vos olhos nos olhos. Olhos
cheios de medo e ansiedade, olhos que viram violência e pobreza, olhos sulcados
por demasiadas lágrimas. Há cinco anos, nesta ilha, o Patriarca Ecuménico e
querido Irmão Bartolomeu disse algo que me impressionou: «Quem tem medo
de vós, não vos fixou nos olhos. Quem tem medo de vós, não viu os vossos
rostos. Quem tem medo de vós, não vê os vossos filhos. Esquece que a
dignidade e a liberdade transcendem o medo e a divisão. Esquece que a
migração não é um problema do Médio Oriente e do norte da África, da Europa e
da Grécia. É um problema do mundo inteiro» (Discurso, 16/IV/2016).
Sim, é um problema mundial, uma crise humanitária que diz respeito a todos. A
pandemia atingiu-nos globalmente, fez com que todos nos sentíssemos no
mesmo barco, fez-nos experimentar o que significa ter os mesmos temores.
Compreendemos que as grandes questões devem ser enfrentadas em conjunto,
porque, no mundo atual, são inadequadas as soluções fragmentadas. Mas,
enquanto as vacinações se estão a efetuar fadigosamente a nível planetário e
algo parece mover-se, embora por entre inúmeros atrasos e incertezas, na luta
contra as mudanças climáticas, tudo parece baldar-se terrivelmente no que diz
respeito às migrações. E, no entanto, há pessoas, vidas humanas em jogo. Está
em jogo o futuro de todos, que, só poderá ser sereno, se for integrador. Só se
aparecer reconciliado com os mais frágeis é que o futuro será próspero. Pois
quando são repelidos os pobres, repele-se a paz. Fechamentos e nacionalismos –
a história no-lo ensina – levam a consequências desastrosas. Com efeito, como
recordou o Concílio Vaticano II, são «absolutamente necessárias para a
edificação da paz (…) a vontade firme de respeitar a dignidade dos outros
homens e povos e a prática assídua da fraternidade» (Gaudium et spes, 78). É
uma ilusão pensar que seja suficiente salvaguardar-se a si mesmo,
defendendo-se dos mais frágeis que batem à porta. O futuro colocar-nos-á ainda
mais em contacto uns com os outros. Para bem encaminhá-lo, não servem ações
unilaterais, mas políticas de longo alcance. A história – repito – no-lo ensina,
mas ainda não aprendemos. Não se volte as costas à realidade, acabe o contínuo
descarregar de responsabilidades para os outros, nem se delegue sempre para
outros a questão migratória, como se a ninguém importasse e fosse apenas um
peso inútil que alguém é obrigado a carregar.
Irmãs, irmãos, os vossos rostos, os vossos olhos pedem-nos para não vos
virarmos as costas, não renegarmos a humanidade que nos irmana, para
assumirmos as vossas histórias e não esquecermos os vossos dramas. Assim
escreveu Elie Wiesel, testemunha da maior tragédia do século passado: «É
porque recordo a nossa origem comum que me aproximo dos homens meus
irmãos. É porque me recuso a esquecer que o futuro deles é tão importante
como o meu» (From the Kingdom of Memory, Reminiscenses, Nova York, 1990,
10). Neste domingo, peço a Deus que nos acorde da indiferença por quem sofre,
nos sacuda do individualismo que exclui, desperte os corações surdos às
necessidades dos outros. E peço também ao homem, a todo o homem:
superemos a paralisia do medo, a indiferença que mata, o desinteresse cínico
que, com luvas de veludo, condena à morte quem está colocado à margem.
Contrariemos na sua raiz o pensamento dominante, aquele que gira em torno do
próprio eu, dos próprios egoísmos pessoais e nacionais que se tornam medida e
critério de tudo.
Passaram-se cinco anos desde a visita que aqui fiz com os queridos Irmãos
Bartolomeu e Ieronymos. Depois de todo este tempo, constatamos que pouca
coisa mudou na questão migratória. Muitos, sem dúvida, se empenharam no
acolhimento e na integração, e quero agradecer aos numerosos voluntários e a
quantos nos vários níveis – institucional, social, caritativo, político – arcaram
com grandes fadigas ocupando-se das pessoas e da questão migratória.
Reconheço o esforço realizado para financiar e construir estruturas de
acolhimento dignas e de coração agradeço à população local pelo grande bem
que fizeram e os inúmeros sacrifícios que suportaram. E quero agradecer
também às autoridades locais, que estão empenhadas em receber, abrigar e
fazer avançar estas pessoas que chegam aqui. Obrigado! Obrigado por tudo o
que fazem! Com amargura, porém, temos de admitir que este país, à
semelhança de outros, continua sob pressão e que, na Europa, há quem persista
em tratar o problema como um assunto que não lhe diz respeito. Isto é trágico.
Recordo, [Senhora Presidente], as suas palavras finais: «Que a Europa faça o
mesmo». E quantas condições indignas do homem! Quantos pontos de triagem
onde migrantes e refugiados vivem em condições que estão no limite da
suportação, sem se vislumbrar no horizonte qualquer solução! E todavia o
respeito pelas pessoas e pelos direitos humanos, especialmente no continente
que não deixa de os promover no mundo, deveria ser sempre salvaguardado e a
dignidade de cada um deveria ter prioridade sobre tudo. É triste ouvir propor,
como solução, o uso de fundos comuns para construir muros, para levantar
barreiras de arame farpado. Estamos na época dos muros e do arame farpado.
Claro, compreendem-se os medos e inseguranças, as dificuldades e perigos.
Fazem-se sentir o cansaço e a frustração, agravados pelas crises económica e
pandémica, mas não é erguendo barreiras que se resolvem os problemas e
melhora a convivência. Antes pelo contrário, é unindo as forças para cuidar dos
outros segundo as possibilidades reais de cada um e no respeito da legalidade,
colocando sempre em primeiro lugar o valor incancelável da vida de cada
homem, de cada mulher, de toda a pessoa. A propósito afirma o referido Elie
Wiesel: «Quando as vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade
humana está em perigo, as fronteiras nacionais tornam-se irrelevantes»
(Discurso ao receber o Prémio Nobel da Paz, 10/XII/1986).
Em várias sociedades, há quem esteja, de forma ideológica, a contrapor
segurança e solidariedade, local e universal, tradição e abertura. Mais do que
tomar partido pelas ideias, ajuda partir da realidade: parar, estender o olhar,
fazê-lo penetrar nos problemas da maioria da humanidade, de tantas populações
vítimas de emergências humanitárias que não criaram, mas têm de as suportar,
frequentemente, depois de longas histórias de exploração ainda em curso. É fácil
arrastar a opinião pública incutindo o medo do outro; mas por que motivo não se
fala, com o mesmo brio, da exploração dos pobres, das guerras esquecidas e
muitas vezes lautamente financiadas, dos acordos económicos feitos na pele do
povo, das manobras ocultas para contrabandar armas e fazer proliferar o seu
comércio? Por que motivo não se fala disto? Há que enfrentar as causas
remotas, não as pessoas pobres que pagam as suas consequências, acabando
até por ser usadas para propaganda política. Para remover as causas profundas,
não basta apenas resolver as emergências. São necessárias ações concordadas.
É preciso abordar as mudanças epocais com grandeza de visão, porque não há
respostas fáceis para problemas complexos. Em vez disso, impõe-se
acompanhar os processos a partir do seu interior para superar os guetos e
favorecer uma integração lenta e indispensável, para acolher de modo fraterno e
responsável as culturas e as tradições alheias.
Se queremos recomeçar, olhemos sobretudo os rostos das crianças. Tenhamos a
coragem de nos envergonhar à vista delas, que são inocentes e constituem o
futuro. Interpelam as nossas consciências, perguntando-nos: «Que mundo nos
quereis dar?» Não fujamos apressadamente das cruas imagens dos seus
corpinhos estendidos, inertes, nas praias. O Mediterrâneo, que uniu durante
milénios povos diferentes e terras distantes, está a tornar-se um cemitério frio
sem lápides. Esta grande bacia hidrográfica, berço de tantas civilizações, agora
parece um espelho de morte. Não deixemos que o mare nostrum se transforme
num desolador mare mortuum, que este lugar de encontros se transforme no
palco de confrontos. Não permitamos que este «mar das memórias» se
transforme no «mar do esquecimento». Por favor, irmãos e irmãs, paremos este
naufrágio de civilização!
Nas margens deste mar, Deus fez-Se homem. A sua Palavra ecoou, trazendo o
anúncio de Deus, que é «Pai e guia de todos os homens» (S. Gregório
Nazianzeno, Discurso 7 para o irmão Cesário, 24). Ele ama-nos como filhos e
quer-nos irmãos. Ao contrário, ofende-se Deus, desprezando o homem criado à
sua imagem, deixando-o à mercê das ondas, num vaivém de indiferença, às
vezes justificada até em nome de pretensos valores cristãos. Ao contrário, a fé
pede compaixão e misericórdia; não esqueçamos qual é o estilo de Deus:
proximidade, compaixão e ternura. A fé exorta à hospitalidade, àquela filoxenia
que permeou a cultura clássica, encontrando depois em Jesus a sua
manifestação definitiva, sobretudo na parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,
29-37) e nas palavras do capítulo 25 do Evangelho de Mateus (cf. vv. 31-46).
Não é ideologia religiosa, são raízes cristãs concretas. Jesus afirma solenemente
que está ali no estrangeiro, no refugiado, no nu e no faminto. E o programa
cristão é encontrar-se onde Jesus está. Sim, porque «o programa do cristão –
escreveu o Papa Bento XVI – é “um coração que vê”» (Carta enc. Deus caritas
est, 31). E não quero terminar estas minhas palavras sem agradecer o
acolhimento praticado pelo povo grego. Muitas vezes este acolhimento torna-se
um problema, porque não se encontram vias de saída para as pessoas irem para
outro lugar. Obrigado, irmãos e irmãs gregos, por esta generosidade!
Agora rezemos a Nossa Senhora para que nos abra os olhos aos sofrimentos dos
irmãos. Ela pôs-Se a caminho apressadamente para ir ter com a prima Isabel,
que estava grávida. Quantas mães grávidas, apressadas e em viagem,
encontraram a morte enquanto levavam no ventre a vida! Que a Mãe de Deus
nos ajude a ter um olhar materno, que veja nos homens filhos de Deus, irmãs e
irmãos que devemos acolher, proteger, promover, integrar e… amar ternamente.
Que a Toda Santa nos ensine a colocar a realidade do homem antes das ideias e
das ideologias, e a mover, rápido, os passos ao encontro de quem sofre.
Agora, todos juntos, rezemos a Nossa Senhora.

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A CHIPRE E À GRÉCIA (2-6 DE DEZEMBRO DE 2021) ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, A SOCIEDADE CIVIL E O CORPO DIPLOMÁTICO DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Senhora Presidente da República,
Membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Distintas Autoridades religiosas e civis,
Ilustres Representantes da sociedade e do mundo da cultura,
Senhoras e Senhores!
Saúdo-vos cordialmente e agradeço à Senhora Presidente as palavras de
boas-vindas que me dirigiu em nome vosso e de todos os cidadãos gregos. É
uma honra estar nesta cidade gloriosa. Faço minhas as palavras de São Gregório
Nazianzeno: «Atenas áurea e dispensadora de bem (…), enquanto procurava a
eloquência, encontrei a felicidade» (Oratio 43, 14). Venho como peregrino a
estes lugares que superabundam de espiritualidade, cultura e civilização, para
beber na mesma felicidade que entusiasmou o grande Padre da Igreja: era a
alegria de cultivar a sabedoria e partilhar a sua beleza; e por conseguinte uma
felicidade não individualista nem isolada, mas, porque nascida do espanto, tende
para o infinito e abre-se à comunidade; uma felicidade sapiente, que a partir
destes lugares se espalhou por toda a parte: sem Atenas e sem a Grécia, a
Europa e o mundo não seriam o que são; seriam menos sapientes e menos
felizes.
A partir daqui dilataram-se os horizontes da humanidade. Também eu me sinto
convidado a erguer o olhar e pousá-lo na parte mais alta da cidade, na Acrópole.
Visível de longe aos viajantes que aqui desembarcaram no decurso dos milénios,
oferecia uma alusão imprescindível à divindade. É o apelo a alargar os
horizontes rumo ao Alto: do Monte Olimpo à Acrópole e ao Monte Athos, a Grécia
convida o ser humano de cada tempo a orientar a viagem da vida para o Alto,
para Deus, porque temos necessidade da transcendência para ser
verdadeiramente humanos. E enquanto hoje no Ocidente, que daqui surgiu, se
tende a ofuscar a necessidade do Céu, enredados pelo frenesim de mil correrias
terrenas e pela ganância insaciável dum consumismo despersonalizante, estes
lugares convidam a deixarmo-nos maravilhar pelo infinito, a beleza do ser, a
alegria da fé. Por aqui passaram as vias do Evangelho, que uniram Oriente e
Ocidente, Lugares Santos e Europa, Jerusalém e Roma; aqueles Evangelhos que,
para levar ao mundo a boa nova de Deus amante do homem, foram escritos em
grego, língua imortal usada pela Palavra – pelo Logos – para se expressar,
linguagem da sapiência humana feita voz da Sapiência divina.
Mas nesta cidade o olhar, além de ser impelido para o Alto, é-o também para o
outro. No-lo recorda o mar, sobre o qual se debruça Atenas e que orienta a
vocação desta terra, situada no coração do Mediterrâneo para ser ponte entre os
povos. Aqui, grandes historiadores se apaixonaram na narração das histórias dos
povos vizinhos e distantes. Aqui, segundo a conhecida afirmação de Sócrates,
começaram a sentir-se cidadãos não só da própria pátria, mas do mundo inteiro.
Cidadãos: aqui o homem tomou consciência de ser «um animal político»
(Aristóteles, Política, I, 2) e, como parte duma comunidade, nos outros viu, não
súditos, mas cidadãos com os quais deviam organizar juntos a polis. Aqui nasceu
a democracia. Milénios depois, o berço tornou-se uma casa, uma grande casa de
povos democráticos: refiro-me à União Europeia e ao sonho de paz e
fraternidade que constitui para muitos povos.
Contudo não se pode deixar de constatar, com preocupação, que hoje – e não só
no continente europeu – se verifica um retrocesso da democracia. Esta exige a
participação e o envolvimento de todos e, consequentemente, requer fadiga e
paciência. É complexa, ao passo que o autoritarismo é despachado, e as
garantias fáceis propostas pelos populismos aparecem tentadoras. Em várias
sociedades, preocupadas com a segurança e anestesiadas pelo consumismo, o
cansaço e o descontentamento levam a uma espécie de «ceticismo
democrático». Mas a participação de todos é uma exigência fundamental; e não
só para alcançar objetivos comuns, mas porque responde àquilo que somos:
seres sociais, irrepetíveis e ao mesmo tempo interdependentes.
Entretanto há também um ceticismo em relação à democracia provocado pela
distância das instituições, pelo medo da perda de identidade, pela burocracia. O
remédio para isto não está na busca obsessiva de popularidade, na sede de
visibilidade, na proclamação de promessas impossíveis nem na adesão a
colonizações ideológicas abstratas, mas na boa política. Porque a política é uma
coisa boa e deve sê-lo na prática, como responsabilidade máxima do cidadão,
como arte do bem comum. Para que o bem seja verdadeiramente compartilhado,
uma atenção particular – diria prioritária – deve ser prestada às faixas mais
frágeis. Esta é a direção a seguir, que um pai fundador da Europa indicou como
antídoto às polarizações que animam a democracia mas arriscam-se a
exasperá-la: «Fala-se muito de quem vai à esquerda ou à direita, mas o ponto
decisivo é avançar e ir para a frente, quer dizer, caminhar rumo à justiça social»
(A. de Gasperi, Discurso proferido em Milão, 23/IV/1949). Neste sentido, há
necessidade de mudar o passo, vendo como dia a dia se difundem medos,
amplificados pela comunicação virtual, e se elaboram teorias para se contrapor
aos outros. Em vez disso, ajudemo-nos a passar do tomar partido ao participar;
do empenho em apoiar apenas a própria parte ao envolvimento ativo em prol da
promoção de todos.
Do tomar partido a participar: tal é a motivação que nos deve mover em várias
frentes. Penso no clima, na pandemia, no mercado comum e, sobretudo, nas
pobrezas generalizadas. São desafios que exigem uma colaboração concreta e
ativa. Precisa dela a comunidade internacional, para abrir sendas de paz através
dum multilateralismo que não seja sufocado por excessivas reivindicações
nacionalistas. Precisa dela a política, para antepor as exigências comuns aos
interesses privados. Pode parecer uma utopia, uma viagem sem esperança num
mar turbulento, uma odisseia longa e irrealizável. E contudo a viagem num mar
agitado – como ensina o grande conto homérico – muitas vezes é a única via. E
alcança a meta se estiver animada pelo desejo de casa, pela diligência de
avançar juntos, pelo nóstos álgos, pela nostalgia. A propósito, gostaria de
reiterar o meu apreço pelo não fácil percurso que levou ao «Acordo de Prespa»,
assinado entre esta República e a da Macedónia do Norte.
Ainda olhando para o Mediterrâneo, o mar que nos abre ao outro, penso nas
suas férteis margens e na árvore que poderia vir a ser o seu símbolo: a oliveira,
cujos frutos acabam de ser colhidos e que irmana as diferentes terras que se
debruçam sobre o único mar. É triste ver como, nos últimos anos, muitas
oliveiras centenárias acabaram queimadas, consumidas por incêndios muitas
vezes causados por condições meteorológicas adversas, provocadas por sua vez
pelas alterações climáticas. À vista da paisagem ferida deste país maravilhoso, a
oliveira pode simbolizar a vontade de contrastar a crise climática e as suas
devastações. De facto, depois do cataclismo primordial narrado pela Bíblia, o
dilúvio, uma pomba voltou para Noé «trazendo no bico uma folha verde de
oliveira» (Gn 8, 11). Era o símbolo do recomeço, da força de recomeçar
mudando estilo de vida, renovando as próprias relações com o Criador, as
criaturas e a criação. Neste sentido, espero que os compromissos assumidos na
luta contra as alterações climáticas apareçam cada vez mais compartilhados e
não sejam de fachada, mas seriamente implementados. Que às palavras sigam
os factos, para que os filhos não paguem mais uma hipocrisia dos pais. Neste
sentido, ressoam as palavras que Homero põe nos lábios de Aquiles: «Sinto
odioso, como as portas do Hades, aquele que diz uma coisa e, no coração,
esconde outra» (Ilíada, IX, 312-313).
Na Escritura, a oliveira constitui também um convite a ser solidário,
especialmente para com aqueles que não pertencem ao próprio povo. «Quando
varejares as tuas oliveiras, não voltes a colher o resto que ficou nos ramos;
deixa-o para o estrangeiro» – diz a Bíblia (Dt 24, 20). Este país, caraterizado
pela hospitalidade, viu em algumas das suas ilhas desembarcar um número de
irmãos e irmãs migrantes superior ao dos próprios habitantes, aumentando
assim as contrariedades que ainda padecem das fadigas da crise económica. Mas
também persiste a demora europeia: a comunidade europeia, dilacerada por
egoísmos nacionalistas, em vez de ser motor de solidariedade, às vezes aparece
bloqueada e descoordenada. Se antes os contrastes ideológicos impediam a
construção de pontes entre o leste e o oeste do continente, hoje a questão
migratória abriu brechas também entre o sul e o norte. Desejo apelar mais uma
vez a uma visão de conjunto, comunitária, face à questão migratória, e
encorajar a ter atenção aos mais necessitados para que, segundo as
possibilidades de cada um dos países, sejam acolhidos, protegidos, promovidos
e integrados no pleno respeito dos seus direitos humanos e da sua dignidade.
Mais do que um obstáculo para o presente, isso representa uma garantia para o
futuro a fim de que decorra sob o signo duma convivência pacífica com aqueles
que cada vez mais são obrigados a fugir à procura de casa e esperança. Eles são
os protagonistas duma terrível odisseia moderna. Gosto de lembrar que, quando
Ulisses desembarcou em Ítaca, não foi reconhecido pelos senhores do lugar, que
lhe tinham usurpado casa e bens, mas por quem cuidara dele. A sua ama
compreendeu que era ele ao ver as cicatrizes. Os sofrimentos irmanam-nos, e
reconhecer a pertença à mesma frágil humanidade ajudará a construir um futuro
mais integrado e pacífico. Transformemos em ousada oportunidade o que parece
ser apenas uma infeliz adversidade.
Ao contrário, a pandemia é a grande adversidade. Fez-nos redescobrir frágeis,
necessitados dos outros. Também neste país é um desafio que envolve
oportunas intervenções por parte das Autoridades – penso na necessidade da
campanha de vacinação – e não poucos sacrifícios aos cidadãos. Mas, no meio
de tanto esforço, surgiu um notável sentido de solidariedade, para o qual a
Igreja Católica local se sente feliz em poder continuar a contribuir, na convicção
de que isto constitua a herança a não perder com o lento aplacar-se da
tempestade. Parecem escritas para os dias de hoje algumas palavras do
juramento de Hipócrates, como o compromisso de «regular o padrão de vida
para o bem dos enfermos», de «abster-se de causar danos e ofensas» aos
outros, de salvaguardar a vida em todos os momentos, particularmente no
ventre materno (cf. Juramento de Hipócrates, texto antigo). Deve ser sempre
privilegiado o direito a ser cuidado e os tratamentos para todos, a fim de que os
mais frágeis, em particular os idosos, nunca sejam descartados: que os idosos
não sejam as vítimas privilegiadas da cultura do descarte. Os idosos são o sinal
da sabedoria dum povo. De facto, a vida é um direito; ao contrário da morte,
que se deve acolher, não subministrar.
Queridos amigos, alguns exemplares de oliveira mediterrânica testemunham
uma vida tão longa que antecede o aparecimento de Cristo. Seculares e
duradouras, resistiram ao passar do tempo e lembram-nos a importância de
conservar raízes fortes, impregnadas de memória. Este país pode ser definido a
memória da Europa – vós sois a memória da Europa – e sinto-me feliz por o
visitar vinte anos depois da histórica visita do Papa João Paulo II e no
bicentenário da sua independência. A este respeito, é conhecida a frase do
general Colocotronis: «Deus pôs a sua assinatura sobre a liberdade da Grécia».
Deus coloca de boa vontade, sempre e por toda a parte, a sua assinatura sobre
a liberdade humana. É o seu maior presente, e aquele que por sua vez mais
aprecia de nós. Na verdade, Ele criou-nos livres, e aquilo de que mais gosta é
que livremente amemos a Ele e ao próximo. Para o tornar possível contribuem
as leis, mas também a educação para a responsabilidade e o crescimento duma
cultura do respeito. A propósito, desejo renovar a minha gratidão pelo
reconhecimento público da comunidade católica e asseguro a sua vontade de
promover o bem comum da sociedade grega, orientando neste sentido a
universalidade que a carateriza, na esperança de que na prática lhe sejam
sempre garantidas aquelas condições necessárias para bem cumprir o seu
serviço.
Há duzentos anos, o Governo provisório do país dirigiu-se aos católicos com
palavras comoventes: «Cristo ordenou o amor ao próximo. E quem nos é mais
próximo do que vós, nossos concidadãos, apesar de haver algumas diferenças
nos ritos? Possuímos a mesma e única pátria, pertencemos a um só povo; nós,
cristãos, somos irmãos – irmãos nas raízes, no crescimento e nos frutos – pela
Santa Cruz». O facto de ser irmãos no sinal da Cruz, neste país abençoado pela
fé e pelas suas tradições cristãs, incita todos os crentes em Cristo a cultivarem a
comunhão em todos os níveis, no nome daquele Deus que abraça a todos com a
sua misericórdia. Neste sentido, amados irmãos e irmãs, agradeço o vosso
empenho, animando-vos a fazer progredir este país na abertura, na inclusão e
na justiça. Desta cidade, deste berço da civilização, elevou-se e oxalá nunca
cesse de se elevar uma mensagem que encaminha para o Alto e para o outro;
que às seduções do autoritarismo responda com a democracia; que à indiferença
individualista oponha a solicitude pelo outro, pelo pobre e pela criação, colunas
essenciais para um humanismo renovado, de que precisam os nossos tempos e a
nossa Europa. O Theós na evloghí tin Elládha [Deus abençoe a Grécia]!

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A CHIPRE E À GRÉCIA (2-6 DE DEZEMBRO DE 2021) ENCONTRO DE SUA BEATITUDE IERONYMOS II E SUA SANTIDADE FRANCISCO COM SUAS RESPECTIVAS COMITIVAS DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Beatitude,
«graça e paz (…) da parte de Deus» (Rm 1, 7)! Saúdo-o com estas palavras do
grande apóstolo Paulo, as mesmas com que, encontrando-se em solo grego, se
dirigiu aos fiéis de Roma. Hoje o nosso encontro renova aquela graça e aquela
paz. Enquanto rezava diante dos «troféus» da Igreja de Roma, que são os
túmulos dos Apóstolos e dos mártires, senti-me impelido a vir aqui como
peregrino, com grande respeito e humildade, para renovar a comunhão
apostólica e alimentar a caridade fraterna. Neste sentido, desejo agradecer-lhe,
Beatitude, as palavras que me dirigiu e que retribuo com afeto, saudando por
seu intermédio o clero, as comunidades monásticas e todos os fiéis ortodoxos da
Grécia.
Há cinco anos encontramo-nos em Lesbos, na emergência de um dos maiores
dramas do nosso tempo, o de muitos irmãos e irmãs migrantes, que não podem
ser deixados na indiferença e vistos apenas como um fardo a gerir ou, pior
ainda, a delegar a outrem. Agora voltamos a reunir-nos para partilhar a alegria
da fraternidade e contemplar o Mediterrâneo que nos circunda não só como
lugar que preocupa e divide, mas também como mar que une. Há pouco,
recordei as oliveiras centenárias que assemelham as terras entre si. Olhando
estas árvores que nos irmanam, penso nas raízes que compartilhamos:
subterrâneas, estão escondidas, muitas vezes esquecidas, mas estão lá e tudo
sustentam. Quais são as nossas raízes comuns que atravessaram os séculos?
São as raízes apostólicas. São Paulo colocou-as em evidência ao lembrar a
importância de estarmos «edificados sobre o alicerce dos Apóstolos» (Ef 2, 20).
E foi precisamente na cultura helénica que estas raízes, desenvolvidas a partir da
semente do Evangelho, começaram a dar fruto abundante: penso em tantos
Padres antigos e nos primeiros grandes Concílios Ecuménicos. […]

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A CHIPRE E À GRÉCIA (2-6 DE DEZEMBRO DE 2021) SANTA MISSA HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Saudação do Santo Padre no fim da Eucaristia
Queridos irmãos e irmãs!
Sou eu que desejo agradecer-vos a todos. Amanhã de manhã terei oportunidade
de saudar o Senhor Presidente da República, aqui presente: saudá-lo-ei no
momento de me despedir deste país, mas desde já quero cordialmente
manifestar a todos a minha gratidão pelo acolhimento e o carinho que me
reservaram. Obrigado!
Aqui, em Chipre, estou a respirar um pouco daquela atmosfera típica da Terra
Santa, onde a antiguidade e a variedade das tradições cristãs enriquecem o
peregrino. Isto faz-me bem, como também me ajuda encontrar comunidades de
crentes que vivem o presente com esperança, estão abertos ao futuro e
partilham este horizonte com os mais necessitados. Penso de modo particular
nos migrantes à procura duma vida melhor, com os quais passarei o meu último
encontro nesta ilha, juntamente com os irmãos e as irmãs de várias Confissões
cristãs.
Obrigado a todos aqueles que colaboraram para esta visita. Rezai por mim. Que
o Senhor vos abençoe e Nossa Senhora vos proteja. Efcharistó [obrigado]!

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A CHIPRE E À GRÉCIA (2-6 DE DEZEMBRO DE 2021) ORAÇÃO ECUMÊNICA COM OS MIGRANTES

Queridos irmãos e irmãs!
Sinto uma grande alegria por estar aqui convosco e concluir a minha visita a
Chipre com este encontro de oração. Agradeço aos Patriarcas Pizzaballa e
Béchara Raї, bem como à senhora Elisabeth da Cáritas. Saúdo com afeto e
gratidão os Representantes das diferentes Confissões cristãs presentes em
Chipre.
Um grande «obrigado», vindo do coração, desejo dizer a vós, jovens migrantes,
que destes os vossos testemunhos. Tinha-os recebido antes, há cerca de um
mês, e já então me tinham impressionado muito e hoje, ao escutá-los,
comoveram-me de novo. Mas não é só emoção; é muito mais: é a comoção que
provém da beleza da verdade. Como a comoção de Jesus quando exclamou:
«Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas
aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25). Também eu
bendigo o Pai celeste porque o mesmo acontece hoje aqui, bem como no mundo
inteiro: aos pequeninos, Deus revela o seu Reino – Reino de amor, justiça e paz.
Depois de vos ter ouvido, compreendemos melhor toda a força profética da
Palavra de Deus, que diz através do apóstolo Paulo: «Já não sois estrangeiros
nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus»
(Ef 2, 19). Escritas aos cristãos de Éfeso (e, portanto, não longe daqui), são
palavras distantes no tempo, e contudo palavras muito próximas, mais atuais do
que nunca, como se fossem escritas hoje para nós: vós «não sois estrangeiros,
mas concidadãos». Esta é a profecia da Igreja: uma comunidade que – com
todas as suas limitações humanas – encarna o sonho de Deus. Pois Deus
também sonha, como tu, Mariamie, que vens da República Democrática do
Congo e te definiste «cheia de sonhos». Como tu, Deus sonha um mundo de
paz, onde os seus filhos vivam como irmãos e irmãs. Deus quer isto, Deus sonha
isto. Somos nós que o não queremos.
A vossa presença, irmãos e irmãs migrantes, é de grande significado para esta
celebração. Os vossos testemunhos são como um «espelho» para nós,
comunidades cristãs. Por exemplo tu, Thamara, que vens do Sri Lanka, quando
dizes «muitas vezes me perguntam quem sou?»: a brutalidade da migração
coloca em risco a identidade própria. «Mas eu sou isto? Não sei… Onde estão as
minhas raízes? Quem sou?». E quando dizes isto, lembras-nos que às vezes
também nos colocam esta pergunta «quem és tu?», pretendendo com
frequência, infelizmente, dizer: «De que parte estás? A que grupo pertences?»
Mas, como tu nos disseste, não somos números, não somos indivíduos a
catalogar; somos «irmãos», «amigos», «crentes», «próximos» uns dos outros.
Mas quando pressionam os interesses de grupos ou os interesses políticos,
mesmo das nações, muitos de nós veem-se postos de lado, escravos sem o
querer. Porque o interesse sempre escraviza, sempre cria escravos. O amor, que
é amplo, que é contrário ao ódio, este amor faz-nos livres.
Quando tu, Maccolins, que vens dos Camarões, dizes que, no decurso da tua
vida, foste «ferido pelo ódio», estás a falar disto, destas feridas dos interesses; e
lembras-nos que o ódio poluiu também as nossas relações entre cristãos. E isto
– como tu disseste – deixa marcas, marcas profundas que perduram por muito
tempo. Trata-se de um veneno. É verdade; ouvimo-lo dos teus lábios, dito com a
tua paixão: o ódio é um veneno do qual é difícil desintoxicar-se. E o ódio é uma
mentalidade distorcida que, em vez de nos fazer reconhecer como irmãos,
faz-nos ver como adversários, como rivais, quando não como objetos a ser
vendidos ou explorados.
Quando tu, Rohz, que vens do Iraque, dizes que és «uma pessoa em viagem»,
lembras-nos que também nós somos comunidade em viagem, caminhamos do
conflito para a comunhão. Neste caminho, que é longo e feito de subidas e
descidas, não nos devem meter medo as diferenças entre nós, mas sim os
nossos fechamentos e preconceitos, que impedem de nos encontrarmos
verdadeiramente e de caminharmos juntos. Os fechamentos e os preconceitos
reconstroem entre nós aquele muro de separação que Cristo derrubou, ou seja,
a inimizade (cf. Ef 2, 14). E então o nosso percurso rumo à unidade plena pode
conhecer passos em frente na medida em que, todos juntos, mantivermos o
olhar fixo sobre Jesus, sobre Ele, que é «a nossa paz» (Ef 2, 14), que é a «pedra
angular» (2, 20). E Ele, o Senhor Jesus, vem ao nosso encontro com o rosto do
irmão marginalizado e descartado; com o rosto do migrante desprezado,
repelido, engaiolado, explorado, mas também – como disseste tu – do migrante
que está em viagem com um fim em vista, rumo a uma esperança, rumo a uma
convivência mais humana.
E assim Deus fala-nos através dos vossos sonhos. O perigo é que muitas vezes
não deixamos os sonhos entrar em nós; preferimos dormir, sem sonhar. É tão
fácil olhar para o outro lado. E, neste mundo, habituamo-nos a esta cultura da
indiferença, a esta cultura de olhar para o outro lado e, assim, adormecermos
tranquilos. Mas, por esta estrada, nunca se pode sonhar. É difícil. Deus fala
através dos vossos sonhos. Deus não fala através das pessoas que não podem
sonhar com nada, ou porque têm tudo ou porque o seu coração se endureceu.
Deus chama-nos também a não nos resignarmos com um mundo dividido, a não
nos resignarmos com comunidades cristãs divididas, mas a caminhar na história
atraídos pelo sonho de Deus, isto é, uma humanidade sem muros de separação,
liberta da inimizade, sem estrangeiros, mas apenas concidadãos, como nos dizia
Paulo no texto que citei. Diferentes, claro, e orgulhosos das nossas
peculiaridades; orgulhosos de ser diversos, destas peculiaridades que são dom
de Deus. Diversos, orgulhosos de o ser, mas sempre reconciliados, sempre
irmãos.
Possa esta ilha, marcada por uma dolorosa divisão – estou a ver o muro, ali
[pela porta aberta da igreja] –, possa tornar-se com a graça de Deus um
laboratório de fraternidade. Agradeço a todos aqueles que trabalham para isto.
Pensar que esta ilha é generosa, mas não pode fazer tudo, porque o número de
pessoas que chega é superior às suas possibilidades de inserir, integrar,
acompanhar, promover. A sua proximidade geográfica facilita…, mas não é fácil.
Devemos compreender os limites a que estão vinculados os governantes desta
ilha. Mas sempre há nesta ilha – pude vê-lo nos líderes que visitei – [o
compromisso] de se tornar, com a graça de Deus, laboratório de fraternidade. E
poderá sê-lo sob duas condições. A primeira é o reconhecimento efetivo da
dignidade de toda a pessoa humana (cf. Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 8). A
nossa dignidade não se vende, não se arrenda, nem deve ser perdida. A testa
alta: eu sou digno filho de Deus. O reconhecimento efetivo da dignidade de toda
a pessoa humana: tal é o fundamento ético, um fundamento universal que está
no centro também da doutrina social cristã. A segunda condição é a abertura
confiante a Deus Pai de todos; e este é o «fermento» que somos chamados a
levar como crentes (cf. ibid., 272).
Sob estas condições, é possível que o sonho se traduza numa viagem diária,
feita de passos concretos, do conflito à comunhão, do ódio ao amor, da fuga ao
encontro. Um caminho paciente que, dia após dia, nos faz entrar na terra que
Deus preparou para nós, na terra onde, se te perguntarem «quem és?», podes
responder com toda a franqueza: «Olha! Sou teu irmão; não me conheces?». E
continua assim, devagar.
Ouvindo-vos, olhando o vosso rosto, a memória leva-me mais além e vai
deter-se nos sofrimentos. Vós chegastes aqui; mas quantos dos vossos irmãos e
irmãs ficaram pelo caminho? Quantos desesperados começaram o caminho em
condições muito difíceis, mesmo precárias, e não conseguiram chegar? Deste
mar, podemos dizer que se tornou um grande cemitério. Olhando-vos, vejo os
sofrimentos do caminho, tantos que foram raptados, vendidos, explorados…,
ainda estão pelo caminho sem sabermos onde. É a história duma escravidão,
uma escravidão universal. Nós vemos o que acontece, e o pior é que estamos a
habituar-nos a isso. «Ah sim, hoje afundou-se um navio, em tal lugar… tantos
desaparecidos…». Mas olhem que este habituar-se é uma doença grave, é uma
doença gravíssima; e não há antibiótico para esta doença. Devemos lutar contra
este vício de habituar-se a tais tragédias quando as lemos nos jornais ou
ouvimos noutros meios de comunicação. Olhando para vós, penso em tantos que
tiveram de voltar para trás porque os repeliram e acabaram nos campos de
concentração, verdadeiros campos de concentração, onde as mulheres são
vendidas, os homens torturados, escravizados… Lamentamos as histórias que
lemos dos campos de concentração do século passado, os dos nazistas, os de
Stalin. Lamentamos quando vemos aquilo e exclamamos: «Mas como foi
possível acontecer isto?» Irmãos e irmãs, está a acontecer hoje, nas costas
vizinhas! Locais de escravidão. Vi alguns testemunhos filmados disso: lugares de
tortura, de venda de pessoas. Digo isto, porque é minha responsabilidade ajudar
a abrir os olhos. A migração forçada não é um comportamento quase turístico:
por favor! É o pecado que temos dentro de nós que nos impele a pensar deste
modo: «Que queres? É pobre gente, pobre gente…» E, com esta expressão
«pobre gente», cancelamos tudo. É a guerra deste momento, é o sofrimento de
irmãos e irmãs que nós não podemos calar. Deram tudo aquilo que possuíam
para subir para um navio, de noite e ainda sem saber se chegarão. E depois…
tantos repelidos para acabar nos campos de concentração, verdadeiros lugares
de confinamento, de tortura e de escravidão.
Tal é a história desta civilização desenvolvida, que chamamos Ocidente. E depois
– desculpai, mas gostaria de dizer o que tenho no coração, ao menos para
rezarmos uns pelos outros e fazer qualquer coisa – e depois, o arame farpado.
Vemo-lo aqui: esta é uma guerra de ódio que divide um país. Mas, noutras
partes onde também existe, o arame farpado é colocado para não deixar entrar
o refugiado, aquele que vem pedir liberdade, pão, ajuda, fraternidade, alegria,
que está fugir do ódio e esbarra num ódio que se chama arame farpado. Que o
Senhor desperte a consciência de todos nós diante destas coisas!
Desculpai se disse as coisas como são, mas não podemos calar e olhar para o
outro lado, nesta cultura da indiferença.
Que o Senhor vos abençoe a todos! Obrigado!

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A CHIPRE E À GRÉCIA (2-6 DE DEZEMBRO DE 2021) ENCONTRO COM OS SACERDOTES, RELIGIOSOS E RELIGIOSAS, DIÁCONOS, CATEQUISTAS, ASSOCIAÇÕES E MOVIMENTOS ECLESIAIS DE CHIPRE DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

[…] Saúdo também a Igreja latina, aqui presente há milénios, que ao longo do
tempo viu crescer, na pessoa dos seus filhos, o entusiasmo da fé e que hoje,
graças à presença de muitos irmãos e irmãs migrantes, se apresenta como um
povo «multicolor», um verdadeiro e concreto lugar de encontro entre etnias e
culturas diferentes. Este rosto eclesial reflete o papel de Chipre no continente
europeu: uma terra com os campos dourados, uma ilha acariciada pelas ondas
do mar, mas sobretudo uma história que é entrelaçamento de povos e mosaico
de encontros. Assim é também a Igreja: católica, isto é, universal, espaço
aberto onde todos são acolhidos e abrangidos pela misericórdia de Deus e pelo
convite a amar. Não há – e oxalá nunca existam – muros na Igreja Católica. Não
nos esqueçamos disto: ninguém de nós aqui foi chamado por proselitismo dum
pregador. Nunca o esqueçamos! O proselitismo é estéril, não dá vida. Todos nós
fomos chamados pela misericórdia de Deus, que não Se cansa de chamar, não
Se cansa de estar perto, não Se cansa de perdoar. Onde estão as raízes da nossa
vocação cristã? Na misericórdia de Deus. É preciso que nunca o esqueçamos. O
Senhor não desilude; a sua misericórdia não dececiona. Sempre espera por nós.
Não há – e oxalá nunca existam – muros na Igreja Católica. Vo-lo peço por
favor! É uma casa comum, é o lugar das relações, é a convivência da
diversidade: este rito, aquele rito…; um pensa assim, esta irmã viu dum modo,
aquela viu doutro… A diversidade de todos e, nesta diversidade, a riqueza da
unidade. E quem faz a unidade? O Espírito Santo. E quem faz a diversidade? O
Espírito Santo. Quem puder compreender, compreenda. Ele é o autor da
diversidade, tal como é o autor da harmonia. Assim o dizia São Basílio: «Ipse
harmonia est – Ele próprio é a harmonia». É Ele Quem faz a diversidade dos
dons e a unidade harmoniosa da Igreja. […]

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A CHIPRE E À GRÉCIA (2-6 DE DEZEMBRO DE 2021) ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, A SOCIEDADE CIVIL E O CORPO DIPLOMÁTICO DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

[…] Com efeito, uma pérola torna-se naquilo que é, porque se forma com o
tempo: requer anos para que as várias estratificações a tornem compacta e
reluzente. De igual modo a beleza desta terra deriva das culturas que se
cruzaram e misturaram ao longo dos séculos. Mesmo hoje a luz de Chipre tem
muitas tonalidades: muitos são os povos e as raças que, com cores diferentes,
compõem a gama cromática desta população. Penso também na presença de
muitos imigrantes, a percentagem mais significativa entre os países da União
Europeia. Guardar a beleza multicolor e poliédrica do conjunto não é fácil;
requer, como na formação da pérola, tempo e paciência, exige um olhar amplo
que abrace a variedade das culturas e se incline para o futuro com clarividência.
Neste sentido, é importante tutelar e promover todas as componentes da
sociedade, de forma especial aquelas que são estatisticamente minoritárias.
Penso também nos vários entes católicos que poderiam beneficiar dum oportuno
reconhecimento institucional, de modo que o contributo prestado à sociedade
através das suas atividades, nomeadamente educativas e caritativas, esteja bem
definido sob o ponto de vista legal.
Uma pérola gera a sua beleza em circunstâncias difíceis. Nasce na obscuridade,
quando a ostra «padece» depois de ter sofrido uma visita inesperada que mina a
sua incolumidade, como, por exemplo, um grão de areia que a irrita. Para se
proteger, reage assimilando aquilo que a feriu: envolve o que é perigoso e
estranho para ela e transforma-o em beleza, numa pérola. A pérola de Chipre
viu-se obscurecida pela pandemia, que impediu muitos visitantes de entrar e ver
a sua beleza, agravando – como noutros lugares – as consequências da crise
económico-financeira. Neste período de retoma, porém, não há de ser a ânsia de
recuperar o perdido que pode garantir um desenvolvimento sólido e duradouro,
mas o empenho em promover a sanidade da sociedade, particularmente através
duma decidida luta à corrupção e às pragas que lesam a dignidade da pessoa;
penso, por exemplo, no tráfico de seres humanos. […]

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PAPA FRANCISCO AUDIÊNCIA GERAL

APELO
[…] Amanhã irei a Chipre e depois à Grécia para visitar as queridas populações
desses países, ricos de história, espiritualidade e civilização. Será uma viagem
às fontes da fé apostólica e da fraternidade entre cristãos de várias confissões.
Terei também a oportunidade de me aproximar de uma humanidade ferida na
carne de tantos migrantes em busca de esperança: irei a Lesbos. Peço-vos, por
favor, que me acompanheis com a oração. Obrigado. […]

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PAPA FRANCISCO ANGELUS

Depois do Angelus
Estimados irmãos e irmãs!
Ontem encontrei-me com os membros de associações e grupos de migrantes e
pessoas que, em espírito de fraternidade, partilham o caminho com eles. Estão
aqui na Praça, com aquela grande bandeira! Bem-vindos! Mas quantos migrantes
– pensemos nisto – quantos migrantes estão expostos, inclusive nestes dias, a
gravíssimos perigos, e quantos perdem a vida nas nossas fronteiras! Sofro com
as notícias sobre a situação em que tantos deles se encontram: os que
morreram no Canal da Mancha; os que estão nas fronteiras da Bielorrússia,
muitos dos quais são crianças; os que morrem afogados no Mediterrâneo.
Quanto sofrimento ao pensar neles. Os que são repatriados para o Norte da
África, capturados por traficantes, que os transformam em escravos: vendem as
mulheres, torturam os homens… Aqueles que, também esta semana, tentaram
atravessar o Mediterrâneo em busca de uma terra de bem-estar e, ao contrário,
encontraram ali uma sepultura; e tantos outros. Aos migrantes que se
encontram nestas situações de crise, garanto a minha oração, e também o meu
coração: sabei que estou sempre perto de vós. Rezar e fazer. Agradeço a todas
as instituições, tanto da Igreja Católica como de outros lugares, especialmente
às Cáritas nacionais e a quantos estão comprometidos em aliviar os seus
sofrimentos. Renovo o urgente apelo àqueles que podem contribuir para a
resolução destes problemas, em particular às Autoridades civis e militares, para
que a compreensão e o diálogo possam finalmente prevalecer sobre qualquer
tipo de instrumentalização e orientem as vontades e os esforços para soluções
que respeitem a humanidade destas pessoas. Pensemos nos migrantes, nos seus
sofrimentos, e rezemos em silêncio… [momento de silêncio]. […]