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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO AOS PARTICIPANTES NO FÓRUM INTERNACIONAL SOBRE MIGRAÇÕES E PAZ

Ilustres Senhores e Senhoras!
Dirijo a minha cordial saudação a cada um de vós, com profunda gratidão pelo
vosso trabalho precioso. Agradeço a D. Tomasi as suas amáveis palavras e ao Dr.
Pöttering a sua intervenção; estou grato também pelos três testemunhos, que
representam ao vivo o tema deste Fórum: «Integração e desenvolvimento: da
reação à ação». Com efeito, não é possível ler os desafios dos movimentos
migratórios contemporâneos e da construção da paz, sem incluir o binómio
«desenvolvimento e integração»: com tal finalidade eu quis instituir o Dicastério
para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, em cujo âmbito um
Departamento se ocupa especificamente do que diz respeito aos migrantes, aos
refugiados e às vítimas do tráfico.
Sem dúvida, nas suas diferentes formas as migrações não representam um
fenómeno novo na história da humanidade. Elas marcaram profundamente todas as
épocas, favorecendo o encontro dos povos e o nascimento de novas civilizações. Na
sua essência, migrar é expressão da aspiração intrínseca à felicidade, própria de
cada ser humano, felicidade que deve ser procurada e perseguida. Para nós,
cristãos, toda a vida terrena é um caminhar rumo à pátria celeste.
O início deste terceiro milénio é fortemente caraterizado por movimentos
migratórios que, em termos de origem, trânsito e destino, atingem quase todas as
regiões da terra. Infelizmente, na maioria dos casos, trata-se de deslocamentos
forçados, causados por conflitos, calamidades naturais, perseguições, mudanças
climáticas, violências, pobreza extrema e condições de vida indignas: «É
impressionante o número de pessoas que migram de um continente para outro,
bem como daqueles que se deslocam dentro de seus próprios países e áreas
geográficas. Os fluxos migratórios contemporâneos são o maior movimento de
pessoas, se não de povos, de todos os tempos».(1)
Diante deste cenário complexo, sinto que devo manifestar uma preocupação
particular pela natureza forçada de muitos fluxos migratórios contemporâneos, que
aumenta os desafios que se apresentam à comunidade política, à sociedade civil e à
Igreja, exigindo que se responda ainda mais urgentemente a tais desafios de modo
coordenado e eficaz.
A nossa resposta comum poderia articular-se em volta de quatro verbos: acolher,
proteger, promover e integrar.
Acolher. «Há uma índole da rejeição que nos assemelha e que nos induz a olhar o
próximo não como um irmão a acolher, mas como alguém deixado fora do nosso
horizonte de vida pessoal, transformando-o antes num concorrente, num súbdito a
dominar».(2) Perante esta índole da rejeição, em última análise enraizada no
egoísmo e amplificada por demagogias populistas, é urgente uma mudança de
atitude para superar a indiferença e antepor aos receios uma generosa atitude de
hospitalidade em relação àqueles que batem às nossas portas. Para quantos fogem
de guerras e de perseguições terríveis, muitas vezes presos nas garras de

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organizações criminosas sem escrúpulos, é necessário abrir canais humanitários
acessíveis e seguros. Um acolhimento responsável e digno destes nossos irmãos e
irmãs começa pela sua primeira acomodação em espaços adequados e decentes. As
grandes multidões de requerentes de asilo e de refugiados não deram resultados
positivos, gerando ao contrário novas situações de vulnerabilidade e de dificuldade.
No entanto, os programas de acolhimento difundido, já iniciados em diversas
localidades, parecem facilitar o encontro pessoal, permitir uma melhor qualidade
dos serviços e oferecer maiores garantias de bom êxito.
Proteger. O meu predecessor, Papa Bento, evidenciou que muitas vezes a
experiência migratória torna as pessoas mais vulneráveis à exploração, ao abuso e
à violência.(3) Referimo-nos a milhões de trabalhadores e trabalhadoras migrantes
— e entre eles, particularmente aqueles que se encontram numa situação irregular
— de refugiados e de requerentes de asilo, de vítimas do tráfico. A defesa dos seus
direitos inalienáveis, a garantia das suas liberdades fundamentais e o respeito pela
sua dignidade são tarefas das quais ninguém se pode eximir. Proteger estes irmãos
e irmãs é um imperativo moral que deve ser traduzido, adotando instrumentos
jurídicos internacionais e nacionais, claros e pertinentes; fazendo escolhas políticas
justas e clarividentes; preferindo processos construtivos, talvez mais lentos, à
obtenção de consenso imediato; pondo em prática programas oportunos e
humanizadores na luta contra os «traficantes de carne humana» que lucram com as
desgraças dos outros; e coordenando os esforços de todos os protagonistas entre
os quais, podeis estar certos disto, a Igreja estará sempre presente.
Promover. Proteger não é suficiente; é necessário promover o desenvolvimento
humano integral de migrantes, refugiados e pessoas deslocadas, que «tem lugar
mediante o cuidado dos bens incomensuráveis da justiça, da paz e da proteção da
criação».(4) Em conformidade com a doutrina social da Igreja,(5) o
desenvolvimento é um direito inegável de cada ser humano. Como tal, deve ser
garantido, assegurando as condições necessárias para a sua prática, tanto na
esfera individual como na social, conferindo a todos um acesso equitativo aos bens
fundamentais e oferecendo a possibilidade de escolha e de crescimento. Também
aqui, é necessária uma ação coordenada e prudente de todas as forças em jogo: da
comunidade política à sociedade civil, das organizações internacionais às
instituições religiosas. A promoção humana dos migrantes e das suas famílias
começa pelas comunidades de origem onde, juntamente com o direito a poder
emigrar, deve ser garantido inclusive o direito a não ter que emigrar,(6) ou seja, o
direito a encontrar na própria pátria as condições que lhes permitam levar uma
existência digna. Com esta finalidade devem ser encorajados esforços que visem a
atuação de programas de cooperação internacional, desvinculados de interesses de
parte, e de desenvolvimento transnacional em que os migrantes possam participar
como protagonistas.
Integrar. A integração, que não é assimilação nem incorporação, constitui um
processo bidirecional, que se baseia essencialmente no mútuo reconhecimento da
riqueza cultural do outro: não se trata de nivelamento de uma cultura sobre a
outra, nem sequer de isolamento recíproco, com o risco de «guetizações» nefastas
e perigosas. No que se refere a quantos chegam e são chamados a não se fechar à
cultura e às tradições do país anfitrião, respeitando antes de tudo as suas leis, não
deve ser absolutamente ignorada a dimensão familiar do processo de integração:
por isso, sinto que devo reiterar a necessidade, várias vezes salientada pelo

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Magistério,(7) de políticas capazes de favorecer e privilegiar as reunificações
familiares. No que diz respeito às populações autóctones, elas devem ser ajudadas,
sensibilizando-as adequadamente e preparando-as de forma positiva para os
process0s de integração, nem sempre simples e imediatos, mas sempre essenciais
e imprescindíveis para o futuro. Por isso, são necessários também programas
específicos, que favoreçam o encontro significativo com o próximo. Além disso,
para a comunidade cristã, a integração pacífica de pessoas de várias culturas é, de
certo modo, inclusive um reflexo da sua catolicidade, uma vez que a unidade que
não anula as diversidades étnicas e culturais constitui uma dimensão da vida da
Igreja que, no Espírito do Pentecostes, está aberta a cada um e deseja abraçar
todos.(8)
A meu ver, conjugar estes quatro verbos na primeira pessoa do singular e na
primeira pessoa do plural, representa hoje um dever, um dever em relação aos
irmãos e às irmãs que, por diferentes motivos, são forçados a deixar a própria terra
de origem: um dever de justiça, de civilização e de solidariedade.
Antes de tudo, um dever de justiça. Já não são sustentáveis as inaceitáveis
desigualdades económicas, que impedem que se ponham em prática o princípio do
destino universal dos bens da terra. Todos nós somos chamados a empreender
processos de partilha respeitadora, responsável e inspirada nos ditames da justiça
distributiva. «Por isso, é necessário encontrar o modo para que todos possam
beneficiar dos frutos da terra, não só para evitar que se alargue o fosso entre
aqueles que têm mais e os que devem contentar-se com as migalhas, mas também
e sobretudo por uma exigência de justiça e equidade, e de respeito por cada ser
humano».(9) Um pequeno grupo de indivíduos não pode controlar os recursos de
metade do mundo. Pessoas e povos inteiros não podem ter o direito de recolher
apenas as migalhas. E ninguém pode sentir-se tranquilo nem exonerado dos
imperativos morais que derivam da corresponsabilidade na gestão do planeta, uma
corresponsabilidade várias vezes reiterada pela comunidade política internacional,
assim como pelo Magistério.(10) Tal corresponsabilidade deve ser interpretada em
sintonia com o princípio de subsidiariedade, «que confere liberdade para o
desenvolvimento das capacidades presentes a todos os níveis, mas
simultaneamente exige mais responsabilidade pelo bem comum a quem tem mais
poder».(11) Fazer justiça significa também reconciliar a história com o presente
globalizado, sem perpetuar lógicas de exploração de pessoas e territórios, que
respondem ao cínico recurso do mercado, para incrementar o bem-estar de poucas
pessoas. Como o Papa Bento afirmou, o processo de descolonização foi adiado,
«tanto por causa de novas formas de colonialismo e dependência de antigos e
novos países hegemónicos, como por graves irresponsabilidades internas aos
próprios países que se tornaram independentes».(12) Tudo isto deve ser resolvido.
Em segundo lugar, há um dever de civilização. O nosso compromisso a favor dos
migrantes, dos refugiados e das pessoas deslocadas é uma aplicação daqueles
princípios e valores de acolhimento e fraternidade que constituem um património
comum de humanidade e sabedoria no qual inspirar-se. Tais princípios e valores
foram historicamente codificados na Declaração Universal dos Direitos do Homem,
bem como em numerosas convenções e acordos internacionais. «Todo o imigrante
é uma pessoa humana que, enquanto tal, possui direitos fundamentais inalienáveis
que hão de ser respeitados por todos e em qualquer situação».(13) Hoje mais do
que nunca, é necessário reafirmar a centralidade da pessoa humana, sem permitir

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que condições contingentes e acessórias, assim como o necessário cumprimento de
requisitos burocráticos ou administrativos, ofusquem a sua dignidade essencial.
Como já declarava São João Paulo II, «a condição de irregularidade legal não
consente reduções sobre a dignidade do migrante, o qual é dotado de direitos
inalienáveis, que não podem ser violados nem ignorados».(14) Por dever de
civilização há que recuperar inclusive o valor da fraternidade, que se fundamenta
na nativa constituição relacional do ser humano: «A consciência viva desta
dimensão relacional leva-nos a ver e a tratar cada pessoa como uma verdadeira
irmã e um verdadeiro irmão; sem tal consciência, torna-se impossível a construção
de uma sociedade justa, de uma paz firme e duradoura».(15) A fraternidade é o
modo mais civil de nos relacionarmos com a presença do outro, a qual não ameaça
mas interroga, confirmando e enriquecendo a nossa identidade individual.(16)
Finalmente, existe um dever de solidariedade. Diante das tragédias que «marcam a
fogo» a vida de numerosos migrantes e refugiados — guerras, perseguições,
abusos, violências e mortes — não podem deixar de brotar espontaneamente
sentimentos de empatia e de compaixão. «Onde está o teu irmão?» (cf. Gn 4, 9):
esta pergunta, que desde as origens Deus dirige ao homem, interpela-nos hoje
especialmente a respeito dos irmãos e das irmãs migrantes: «Esta não é uma
pergunta feita a outrem; é uma pergunta posta a mim, a ti, a cada um de
nós».(17) A solidariedade nasce exatamente da capacidade de compreender as
necessidades do irmão e da irmã em dificuldade, e de as assumir. Em síntese é
sobre isto que se funda o valor sagrado da hospitalidade, presente nas tradições
religiosas. Para nós, cristãos, a hospitalidade concedida ao forasteiro necessitado de
amparo é oferecida ao próprio Jesus Cristo, que se identificou com o estrangeiro:
«Eu era forasteiro e vós recebestes-me» (Mt 25, 35). O dever da solidariedade
consiste em contrastar a cultura do descartável e em prestar mais atenção aos
frágeis, aos pobres e aos vulneráveis. Por isso, «é preciso que todos mudem a
atitude em relação aos migrantes e refugiados; é necessário passar de uma atitude
de defesa e de medo, de desinteresse ou de marginalização — que, no final,
corresponde precisamente à “cultura do descartável” — para uma atitude que tem
por base a “cultura do encontro”, a única capaz de construir um mundo mais justo
e fraterno, um mundo melhor».(18)
Na conclusão desta reflexão, permiti que chame de novo a atenção para um grupo
particularmente vulnerável entre os migrantes, refugiados e pessoas deslocadas,
que somos chamados a receber, proteger, promover e integrar. Refiro-me às
crianças e aos adolescentes que são forçados a viver longe da própria terra natal e
separados dos afetos familiares. Foi a eles que dediquei a mais recente Mensagem
para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, salientando que «é preciso apostar
na proteção, na integração e em soluções duradouras».(19)
Estou convicto de que estes dois dias de trabalho darão abundantes frutos de boas
obras. Asseguro-vos a minha oração; quanto a vós, por favor, não vos esqueçais de
rezar por mim. Obrigado.

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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO POR OCASIÃO DA VISITA À UNIVERSIDADE “ROMA TRE”

[…] Muitas urgências sociais e muitas situações de vulnerabilidade e de pobreza
nos interpelam: pensemos nas pessoas que vivem nas ruas, nos migrantes, em
quantos necessitam não só de alimentos e vestuário, mas de uma inserção na
sociedade, como por exemplo aqueles que saem das prisões. Indo ao encontro
destas pobrezas sociais, tornámo-nos protagonistas de ações construtivas que se
opõem às destrutivas dos conflitos violentos e também à cultura do hedonismo e do
descarte, baseada nos ídolos do dinheiro, do prazer, do aparecer… Ao contrário,
trabalhando com projetos, inclusive pequenos, que favorecem o encontro e a
solidariedade, recuperamos juntos um sentimento de confiança na vida.
[…]

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CARTA APOSTÓLICA EM FORMA DE «MOTU PROPRIO» DO SUMO PONTÍFICE FRANCISCO SANCTUARIUM IN ECCLESIA com a qual se transferem as Competências sobre os Santuários ao Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização

Através da espiritualidade própria de cada Santuário, os peregrinos são guiados
com a “pedagogia de evangelização” [6] rumo a um compromisso cada vez mais
responsável quer na sua formação cristã, quer no testemunho necessário de
caridade que dele deriva. Além disso, o Santuário contribui em grande medida para
o compromisso catequético da comunidade cristã;[7] com efeito, transmitindo em
coerência com os tempos a mensagem que deu início à sua fundação, enriquece a
vida dos crentes, oferecendo-lhes as motivações para um empenho na fé (cf. 1 Ts
1, 3) mais maduro e consciente. Por fim, no Santuário escancararam-se as portas
aos doentes, às pessoas com deficiências e, sobretudo, aos pobres, marginalizados,
refugiados e migrantes.[…]

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MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO AOS PARTICIPANTES NO ENCONTRO DOS MOVIMENTOS POPULARES REALIZADO EM MODESTO, CALIFÓRNIA [16-19 DE FEVEREIRO DE 2017])

Estimados irmãos!
Em primeiro lugar, gostaria de vos felicitar pelo esforço de reproduzir no plano
nacional o trabalho que já realizais nos Encontros Mundiais dos Movimentos
Populares. Através desta carta, desejo animar e fortalecer cada um de vós, as
vossas organizações e todos aqueles que lutam pelos três T: «tierra, techo y
trabajo», terra, teto e trabalho. Congratulo-me convosco por tudo o que levais a
cabo.
Gostaria de agradecer à Campaign for Human Development, ao seu Presidente, D.
David Talley, e aos Bispos anfitriões D. Stephen Blaire, D. Armando Ochoa e D.
Jaime Soto, o apoio decidido que ofereceram a este encontro. Obrigado ao Cardeal
Turkson porque continua a acompanhar os movimentos populares através do novo
Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Estou muito feliz
por vos ver trabalhar juntos pela justiça social! Como gostaria que em todas as
Dioceses se propagasse esta energia construtiva, que lança pontes entre os povos e
as pessoas, pontes capazes de atravessar os muros da exclusão, da indiferença, do
racismo e da intolerância.
Além disso, gostaria de ressaltar o trabalho realizado pela Rede Nacional PICO e
pelas organizações promotoras desta assembleia. Disseram-me que PICO significa
«pessoas que melhoram a própria comunidade através da organização». Que bonita
síntese da missão dos movimentos populares: trabalhar no vosso ambiente, ao lado
do próximo, organizados entre vós, para fazer progredir as vossas comunidades.
Há poucos meses, em Roma, pudemos falar sobre muros e medo; sobre pontes e
amor. Não me quero repetir: estes temas desafiam os nossos valores mais
profundos.
Sabemos que nenhum destes males teve início ontem. Desde há tempos
enfrentamos a crise do paradigma imperante, um sistema que causa sofrimentos
enormes à família humana, atacando ao mesmo tempo a dignidade das pessoas e a
nossa Casa Comum, para sustentar a tirania invisível do dinheiro, que garante
apenas os privilégios de poucos. «A humanidade vive um momento histórico» (Papa
Francisco, Evangelii gaudium, n. 52).
A nós cristãos, assim como a todas as pessoas de boa vontade, compete viver e
agir neste momento. «Trata-se de uma responsabilidade grave, pois algumas
realidades hodiernas, se não encontrarem boas soluções, poderão desencadear tais
processos de desumanização que depois será difícil retroceder» (Ibidem, n. 51).
São os «sinais dos tempos» que devemos reconhecer para agir. Perdemos tempo
precioso, sem lhes prestar a devida atenção, sem resolver estas realidades
destruidoras. É assim que se aceleram os processos de desumanização. Da
participação dos povos como protagonistas, e em grande medida de vós
movimentos populares, dependem a direção que este momento histórico tomar e a
solução desta crise, que continua a exacerbar-se.

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Não devemos permanecer paralisados pelo medo, mas nem sequer viver
aprisionados no conflito. É necessário reconhecer o perigo, e também a
oportunidade que cada crise pressupõe para progredir rumo a uma síntese
superadora. Na língua chinesa, que exprime a sabedoria ancestral daquele grande
povo, a palavra crise é formada por estes dois ideogramas: Wēi, que representa o
perigo; e Jī,que representa a oportunidade.
O perigo consiste em negar o próximo e assim, sem se dar conta, negar a sua
humanidade, a nossa humanidade, negar-nos a nós mesmos e negar o
mandamento mais importante de Jesus. Esta é a desumanização. No entanto,
existe uma oportunidade: que a luz do amor pelo próximo ilumine a Terra com o
seu esplendor deslumbrante como um relâmpago na escuridão, que nos desperte e
que a nova humanidade germine com aquela resistência obstinada e forte típico do
que é autêntico.
Hoje ressoa nos nossos ouvidos a questão que o doutor da lei apresenta a Jesus no
Evangelho de Lucas: «Mas quem é o meu próximo?». Quem é aquele que deve ser
amado como a si mesmo? Talvez ele esperasse uma resposta fácil, para poder
continuar a levar a sua vida: «Serão os meus parentes? Os meus compatriotas?
Aqueles da minha religião?…». Porventura queria levar Jesus a isentar-nos da
obrigação de amar os pagãos e os estrangeiros, naquela época considerados
impuros. Aquele homem quer uma regra clara, que lhe permita classificar os outros
em «próximo» e «não próximo», naqueles que podem tornar-se próximos e em

quantos não podem tornar-se tais (cf. Papa Francisco, Audiência geral de quarta-
feira, 27 de abril de 2016).

Jesus responde com uma parábola que traz à cena duas figuras da elite daquele
tempo, além de um terceiro personagem, pagão e impuro: o samaritano. No
caminho de Jerusalém para Jericó, o sacerdote e o levita encontram um homem
moribundo, que os ladrões assaltaram, roubaram, feriram e abandonaram. Em
situações semelhantes, a Lei do Senhor previa a obrigação de o socorrer, mas
ambos vão além, não param. Tinham pressa. Mas o samaritano, aquele ser
desprezado, aquele resto sobre o qual ninguém teria apostado e que contudo,
também ele, tinha os seus deveres e obrigações, quando viu o homem ferido, não
passou além como os outros dois, que estavam relacionados com o Templo, mas
«vendo-o, teve compaixão» (v. 33). O samaritano comporta-se com misericórdia
autêntica: ligou as feridas daquele homem, levou-o para uma hospedaria, cuidou
pessoalmente dele e providenciou às suas necessidades.
Tudo isto nos ensina que a compaixão, o amor, não é um vago sentimento, mas
significa cuidar do outro até pagar pessoalmente por ele. Significa comprometer-se
dando todos os passos necessários para «se aproximar» do outro até se identificar
com ele; «Amarás o teu próximo como a ti mesmo»: eis o mandamento do Senhor
(Ibidem).
As feridas provocadas pelo sistema da economia que tem no centro o deus dinheiro,
e que às vezes age com a brutalidade dos ladrões da parábola, foram
criminosamente ignoradas. Na sociedade globalizada, existe um estilo elegante de
olhar para o outro lado, que se pratica de maneira recorrente: sob as aparências do
politicamente correto ou das modas ideológicas, olhamos para aquele que sofre
mas não o tocamos, transmitimo-lo ao vivo e até proferimos um discurso
aparentemente tolerante e cheio de eufemismos, mas nada fazemos de sistemático
para debelar as feridas sociais, nem sequer para enfrentar as estruturas que

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deixam tantos seres humanos na rua. Esta atitude hipócrita, tão diferente daquela
do samaritano, manifesta a ausência de uma conversão autêntica e de um
verdadeiro compromisso em prol da humanidade.
Trata-se de uma fraude moral que, mais cedo ou mais tarde, vem à tona como uma
miragem que desaparece. Os feridos estão aqui, constituem uma realidade. O
desemprego é real, a corrupção é concreta, a crise de identidade é real, o
esvaziamento das democracias é concreto. A gangrena de um sistema não pode ser
disfarçada para sempre, pois mais cedo ou mais tarde sente-se o seu fedor, e
quando já não se pode negá-la, do próprio poder que gerou tal situação nasce a
manipulação do medo, da insegurança, do protesto, até da justa indignação das
pessoas, que transferem a responsabilidade de todos os males para um «não
próximo». Não me refiro a algumas pessoas em particular, mas a um processo
social que se desenvolve em muitas regiões do mundo, e que traz consigo um
grave perigo para a humanidade.
Jesus indica-nos outro caminho. Não classifiques os outros, para ver quem é
próximo e quem não é. Tu podes tornar-te próximo daquele que se encontra em
necessidade, e sê-lo-ás se tiveres compaixão no teu coração, ou seja, se tiveres a
capacidade de sofrer com o outro. Deves tornar-te samaritano. E depois tens de ser
também como o hospedeiro ao qual o samaritano, no final da parábola, confia a
pessoa que sofre. Quem é aquele hospedeiro? É a Igreja, a comunidade cristã, as
pessoas solidárias, as organizações sociais, somos nós, sois vós aos quais o Senhor
Jesus confia todos os dias aqueles que sofrem no corpo e no espírito, a fim de
podermos continuar a infundir neles, incomensuravelmente, toda a sua misericórdia
e a sua salvação. Nisto consiste a humanidade autêntica, resistente à
desumanização que nos apresenta sob a forma da indiferença, da hipocrisia e da
intolerância. Sei que assumistes o compromisso de lutar pela justiça social, de

salvaguardar a irmã e mãe terra e de acompanhar os migrantes. Desejo confirmar-
vos na vossa escolha e, a este propósito, partilhar convosco duas reflexões.

A crise ecológica é real. «Existe um consenso científico deveras consistente,
indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático»
(Papa Francisco, Laudato si’, n. 23). Indubitavelmente, a ciência não é a única
forma de conhecimento. E também não há dúvida de que a ciência não é
necessariamente «neutra», porque muitas vezes esconde posições ideológicas ou
interesses financeiros. No entanto, sabemos também o que acontece quando
negamos a ciência, deixando de ouvir a voz da natureza. Assumo aquilo que nos
compete a nós, católicos. Não devemos decair no negacionismo. O tempo começa a
esgotar-se. Devemos agir. Ele pede novamente a vós, aos povos nativos, aos
pastores e aos governantes, que defendam a Criação.

A segunda reflexão, eu já a propus durante o nosso último encontro, mas parece-
me importante repeti-la: nenhum povo é criminoso, nenhuma religião é terrorista.

Não existe o terrorismo cristão, não existe o terrorismo judeu, não existe o
terrorismo islâmico. Não existe! Nenhum povo é criminoso, nem narcotraficante,
nem sequer violento. «Acusam-se da violência os pobres e as populações mais
pobres, mas sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de
guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há de provocar
a explosão» (Papa Francisco, Evangelii gaudium, n. 59). Existem pessoas
fundamentalistas e violentas em todos os povos e em todas as religiões que, além

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disso, se revigoram com as generalizações intolerantes, alimentando-se com o ódio
e a xenofobia. Enfrentando o terror com o amor, nós trabalhamos a favor da paz.
Peço-vos firmeza e mansidão na propagação destes princípios: peço-vos que não os
troqueis com mercadorias baratas e, como São Francisco de Assis, que doeis tudo
aquilo que possuís, pois: «Onde houver ódio, que eu leve o amor; onde houver
ofensa, que eu leve o perdão; onde houver discórdia, que eu leve a união; onde
houver erro, que eu leve a Verdade» (Oração de São Francisco de Assis,
fragmento).
Sabei que rezo por vós, que oro convosco e peço ao nosso Deus Pai que vos
acompanhe e vos abençoe, que vos conceda a abundância do seu amor e vos
proteja. Peço-vos, por favor, para rezar por mim e ir em frente.

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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO AOS MEMBROS DA COMUNIDADE DA ” CIVILTÀ CATTOLICA”

[…] A crise é global, e por conseguinte é necessário dirigir o nosso olhar para as
convicções culturais dominantes e para os critérios através dos quais as pessoas
consideram que algo é bom ou mau, desejável ou não. Só um pensamento deveras
aberto pode enfrentar a crise e compreender para que rumo o mundo está
encaminhado, como se encaram as crises mais complexas e urgentes, a geopolítica,
os desafios da economia e a grave crise humanitária ligada ao drama das
migrações, que é o verdadeiro nó político global dos nossos dias. […]

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PAPA FRANCISCO AUDIÊNCIA GERAL

Saudações
[…] olto a falar da celebração de hoje, Dia de oração e reflexão contra o tráfico de
pessoas, que se celebra neste dia porque hoje é a festa de Santa Josefina Bakhita
[mostra um opúsculo que fala dela]. Esta jovem escravizada na África, explorada e
humilhada, não perdeu a esperança, levou em frente a fé e acabou por chegar à
Europa como migrante. Aqui sentiu a chamada do Senhor e fez-se religiosa.
Oremos a Santa Josefina Bakhita por todos os migrantes, refugiados e explorados
que sofrem tanto!
E falando de migrantes expulsos e explorados, hoje gostaria de rezar convosco de
modo especial pelos nossos irmãos e irmãs Rohinya: expulsos do Myanmar, vão de
um lado para outro porque não os querem… É um povo bom, pacífico. Não são
cristãos, são bons, são nossos irmãos e irmãs! Sofrem há anos! Foram torturados,
assassinados, simplesmente porque conservam as suas tradições, a sua fé
muçulmana. Oremos por eles. Convido-vos a rezar por eles ao nosso Pai que está
nos Céus, todos juntos, pelos nossos irmãos e irmãs Rohinya. «Pai nosso…».
[…]

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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO AOS MEMBROS DA DIREÇÃO ITALIANA ANTIMÁFIA E ANTITERRORISMO

[…] A sociedade tem grande confiança no vosso profissionalismo e na vossa
experiência de magistrados de investigação, comprometidos no combate e na
erradicação do crime organizado. Exorto-vos a dedicar todos os esforços,
especialmente na luta contra o tráfico de pessoas e o contrabando de migrantes:
trata-se de crimes muito graves que atingem os mais frágeis entre os frágeis! A
este propósito, é necessário incrementar as atividades de tutela das vítimas,
prevendo a assistência jurídica e social a estes nossos irmãos e irmãs em busca de
paz e de futuro. Aqueles que fogem dos seus países por causa da guerra, das
violências e das perseguições têm o direito de receber hospitalidade adequada e
salvaguarda idónea nos países que se definem civis. […]

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MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA O DIA MUNDIAL DO MIGRANTE E DO REFUGIADO 2017 “Migrantes de menor idade, vulneráveis e sem voz”

Queridos irmãos e irmãs!
«Quem receber um destes meninos em meu nome é a Mim que recebe; e quem Me
receber, não Me recebe a Mim mas Àquele que Me enviou» (Mc 9, 37; cf. Mt 18, 5;
Lc 9, 48; Jo 13, 20). Com estas palavras, os evangelistas recordam à comunidade
cristã um ensinamento de Jesus que é entusiasmador mas, ao mesmo tempo,
muito empenhativo. De facto, estas palavras traçam o caminho seguro que na
dinâmica do acolhimento, partindo dos mais pequeninos e passando pelo Salvador,
conduz até Deus. Assim o acolhimento é, precisamente, condição necessária para
se concretizar este itinerário: Deus fez-Se um de nós, em Jesus fez-Se menino e a
abertura a Deus na fé, que alimenta a esperança, manifesta-se na proximidade
amorosa aos mais pequeninos e mais frágeis. Caridade, fé e esperança: estão todas
presentes nas obras de misericórdia, tanto espirituais como corporais, que
redescobrimos durante o recente Jubileu Extraordinário.
Mas os evangelistas detêm-se também sobre a responsabilidade de quem vai
contra a misericórdia: «Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem
em Mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o
lançassem nas profundezas do mar» (Mt 18, 6; cf. Mc 9, 42; Lc 17, 2). Como não
pensar a esta severa advertência quando consideramos a exploração feita por
pessoas sem escrúpulos a dano de tantas meninas e tantos meninos encaminhados
para a prostituição ou sorvido no giro da pornografia, feitos escravos do trabalho
infantil ou alistados como soldados, envolvidos em tráficos de drogas e outras
formas de delinquência, forçados por conflitos e perseguições a fugir, com o risco
de se encontrarem sozinhos e abandonados?
Assim, por ocasião da ocorrência anual do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado,
sinto o dever de chamar a atenção para a realidade dos migrantes de menor idade,
especialmente os deixados sozinhos, pedindo a todos para cuidarem das crianças
que são três vezes mais vulneráveis – porque de menor idade, porque estrangeiras
e porque indefesas – quando, por vários motivos, são forçadas a viver longe da sua
terra natal e separadas do carinho familiar.
Hoje, as migrações deixaram de ser um fenómeno limitado a algumas áreas do
planeta, para tocar todos os continentes, assumindo cada vez mais as dimensões
dum problema mundial dramático. Não se trata apenas de pessoas à procura dum
trabalho digno ou de melhores condições de vida, mas também de homens e
mulheres, idosos e crianças, que são forçados a abandonar as suas casas com a
esperança de se salvar e encontrar paz e segurança noutro lugar. E os menores são
os primeiros a pagar o preço oneroso da emigração, provocada quase sempre pela
violência, a miséria e as condições ambientais, fatores estes a que se associa
também a globalização nos seus aspetos negativos. A corrida desenfreada ao lucro
rápido e fácil traz consigo também a propagação de chagas aberrantes como o
tráfico de crianças, a exploração e o abuso de menores e, em geral, a privação dos

304
direitos inerentes à infância garantidos pela Convenção Internacional sobre os
Direitos da Infância.
Pela sua delicadeza particular, a idade infantil tem necessidades únicas e
irrenunciáveis. Em primeiro lugar, o direito a um ambiente familiar saudável e
protegido, onde possam crescer sob a guia e o exemplo dum pai e duma mãe; em
seguida, o direito-dever de receber uma educação adequada, principalmente na
família e também na escola, onde as crianças possam crescer como pessoas e
protagonistas do seu futuro próprio e da respetiva nação. De facto, em muitas
partes do mundo, ler, escrever e fazer os cálculos mais elementares ainda é um
privilégio de poucos. Além disso todos os menores têm direito de brincar e fazer
atividades recreativas; em suma, têm direito a ser criança.
Ora, de entre os migrantes, as crianças constituem o grupo mais vulnerável,

porque, enquanto assomam à vida, são invisíveis e sem voz: a precariedade priva-
as de documentos, escondendo-as aos olhos do mundo; a ausência de adultos, que

as acompanhem, impede que a sua voz se erga e faça ouvir. Assim, os menores
migrantes acabam facilmente nos níveis mais baixos da degradação humana, onde
a ilegalidade e a violência queimam numa única chama o futuro de demasiados
inocentes, enquanto a rede do abuso de menores é difícil de romper.
Como responder a esta realidade?
Em primeiro lugar, tornando-se consciente de que o fenómeno migratório não é
alheio à história da salvação; pelo contrário, faz parte dela. Relacionado com ele
está um mandamento de Deus: «Não usarás de violência contra o estrangeiro
residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egito»
(Ex 22, 20); «amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egito» (Dt
10, 19). Este fenómeno constitui um sinal dos tempos, um sinal que fala da obra
providencial de Deus na história e na comunidade humana tendo em vista a
comunhão universal. Embora sem ignorar as problemáticas e, frequentemente, os
dramas e as tragédias das migrações, bem como as dificuldades ligadas com o
acolhimento digno destas pessoas, a Igreja encoraja a reconhecer o desígnio de
Deus também neste fenómeno, com a certeza de que ninguém é estrangeiro na
comunidade cristã, que abraça «todas as nações, tribos, povos e língua» (Ap 7, 9).
Cada um é precioso – as pessoas são mais importantes do que as coisas – e o valor
de cada instituição mede-se pelo modo como trata a vida e a dignidade do ser
humano, sobretudo em condições de vulnerabilidade, como no caso dos migrantes
de menor idade.
Além disso, é preciso apostar na proteção, na integração e em soluções
duradouras.
Em primeiro lugar, trata-se de adotar todas as medidas possíveis para garantir
proteção e defesa aos menores migrantes, porque estes, «com frequência, acabam
na estrada deixados a si mesmos e à mercê de exploradores sem escrúpulos que,
muitas vezes, os transformam em objeto de violência física, moral e sexual» (Bento
XVI, Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiadode 2008).
Aliás a linha divisória entre migração e tráfico pode tornar-se às vezes muito sutil.
Há muitos fatores que contribuem para criar um estado de vulnerabilidade nos
migrantes, especialmente nos menores: a indigência e a falta de meios de
sobrevivência – a que se vêm juntar expectativas irreais inculcadas pelos meios de
comunicação –; o baixo nível de alfabetização; o desconhecimento das leis, da
cultura e, frequentemente, da língua dos países que os acolhem. Tudo isto torna-

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os, física e psicologicamente, dependentes. Mas o incentivo mais forte para a
exploração e o abuso das crianças é a demanda. Se não se encontra um modo de
intervir com maior rigor e eficácia contra os exploradores, não será possível acabar
com as inúmeras formas de escravidão de que são vítimas os menores.
Por isso, é preciso que os imigrantes, precisamente para o bem dos seus filhos,
colaborem sempre mais estreitamente com as comunidades que os recebem.
Olhamos, com muita gratidão, para os organismos e instituições, eclesiais e civis,
que, com grande esforço, oferecem tempo e recursos para proteger os menores das
mais variadas formas de abuso. É importante que se implementem colaborações
cada vez mais eficazes e incisivas, fundadas não só na troca de informações, mas
também no fortalecimento de redes capazes de assegurar intervenções tempestivas
e capilares. Isto sem subestimar que a força extraordinária das comunidades
eclesiais se revela sobretudo quando há unidade de oração e comunhão na
fraternidade.
Em segundo lugar, é preciso trabalhar pela integração das crianças e adolescentes
migrantes. Eles dependem em tudo da comunidade dos adultos e, com muita
frequência, a escassez de recursos financeiros torna-se impedimento à adoção de
adequadas políticas de acolhimento, assistência e inclusão. Consequentemente, em
vez de favorecer a inserção social dos menores migrantes, ou programas de
repatriamento seguro e assistido, procura-se apenas impedir a sua entrada,
favorecendo assim o recurso a redes ilegais; ou então, são reenviados para o seu
país de origem, sem antes se assegurar de que tal corresponda a seu «interesse
superior» efetivo.
A condição dos migrantes de menor idade é ainda mais grave quando se encontram
em situação irregular ou quando estão ao serviço da criminalidade organizada.
Nestes casos, vêem-se muitas vezes destinados a centros de detenção. De facto,
não é raro acabarem presos e, por não terem dinheiro para pagar a fiança ou a
viagem de regresso, podem ficar reclusos por longos períodos, expostos a abusos e
violências de vário género. Em tais casos, o direito de os Estados gerirem os fluxos
migratórios e salvaguardarem o bem comum nacional deve conjugar-se com o
dever de resolver e regularizar a posição dos migrantes de menor idade, no pleno
respeito da sua dignidade e procurando ir ao encontro das suas exigências, quando
estão sozinhos, mas também das exigências de seus pais, para bem de todo o
núcleo familiar.
Fundamental é ainda a adoção de procedimentos nacionais adequados e de planos
de cooperação concordados entre os países de origem e de acolhimento, tendo em
vista a eliminação das causas da emigração forçada dos menores.
Em terceiro lugar, dirijo a todos um sentido apelo para que se busquem e adotem
soluções duradouras. Tratando-se de um fenómeno complexo, a questão dos
migrantes de menor idade deve ser enfrentada na raiz. Guerras, violações dos
direitos humanos, corrupção, pobreza, desequilíbrios e desastres ambientais fazem
parte das causas do problema. As crianças são as primeiras a sofrer com isso,
suportando às vezes torturas e violências corporais, juntamente com as morais e
psíquicas, deixando nelas marcas quase sempre indeléveis.
Por isso, é absolutamente necessário enfrentar, nos países de origem, as causas
que provocam as migrações. Isto requer, como primeiro passo, o esforço de toda a
Comunidade Internacional para extinguir os conflitos e as violências que
constringem as pessoas a fugir. Além disso, impõe-se uma visão clarividente, capaz

306
de prever programas adequados para as áreas atingidas pelas mais graves
injustiças e instabilidades, para que se garanta a todos o acesso ao autêntico
desenvolvimento que promova o bem de meninos e meninas, esperanças da
humanidade.
Por fim, desejo dirigir-vos uma palavra, a vós que caminhais ao lado de crianças e
adolescentes pelas vias da emigração: eles precisam da vossa ajuda preciosa; e
também a Igreja tem necessidade de vós e apoia-vos no serviço generoso que
prestais. Não vos canseis de viver, com coragem, o bom testemunho do Evangelho,
que vos chama a reconhecer e acolher o Senhor Jesus presente nos mais pequenos
e vulneráveis.
Confio todos os menores migrantes, as suas famílias, as suas comunidades e vós
que os seguis de perto à proteção da Sagrada Família de Nazaré, para que vele por
cada um e a todos acompanhe no caminho; e, à minha oração, uno a Bênção
Apostólica.

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PAPA FRANCISCO ANGELUS

Depois do Angelus
Queridos irmãos e irmãs!
Hoje celebramos o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, dedicado ao tema
«Migrantes menores de idade, vulneráveis e sem voz». Estes nossos pequenos
irmãos, especialmente se não acompanhados, estão expostos e muitos perigos. E
digo-vos que são tantos! É necessário tomar todas as medidas possíveis para
garantir aos migrantes menores a proteção e a defesa, mas também a sua
integração.
Dirijo uma saudação especial às representações de diversas comunidades étnicas
aqui congregadas. Caros amigos, faço votos para que possais viver serenamente
nas localidades que vos acolherem, respeitando as suas leis e tradições e, ao
mesmo tempo, preservando os valores das vossas culturas de origem. O encontro
entre várias culturas é sempre um enriquecimento para todos! Agradeço ao
Secretariado para os Migrantes da Diocese de Roma e a quantos se dedicam aos
migrantes para os acolher e acompanhar nas suas dificuldades, e encorajo-os a
prosseguir nesta obra, recordando o exemplo de Santa Francisca Xavier Cabrini,
padroeira dos migrantes, cujo centenário da morte se comemora este ano. Esta
irmã corajosa dedicou a sua vida para levar o amor de Cristo a quantos estavam
longe da pátria e da família. O seu testemunho nos ajude a cuidar do irmão
estrangeiro, no qual está presente Jesus, muitas vezes sofredor, rejeitado e
humilhado. Quantas vezes na Bíblia o Senhor nos pediu para acolher os migrantes e
os forasteiros, recordando-nos que também nós somos forasteiros! […]

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MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA O DIA MUNDIAL DO MIGRANTE E DO REFUGIADO 2017 “Migrantes de menor idade, vulneráveis e sem voz”

Queridos irmãos e irmãs!
«Quem receber um destes meninos em meu nome é a Mim que recebe; e quem Me
receber, não Me recebe a Mim mas Àquele que Me enviou» (Mc 9, 37; cf. Mt 18, 5;
Lc 9, 48; Jo 13, 20). Com estas palavras, os evangelistas recordam à comunidade
cristã um ensinamento de Jesus que é entusiasmador mas, ao mesmo tempo,
muito empenhativo. De facto, estas palavras traçam o caminho seguro que na
dinâmica do acolhimento, partindo dos mais pequeninos e passando pelo Salvador,
conduz até Deus. Assim o acolhimento é, precisamente, condição necessária para
se concretizar este itinerário: Deus fez-Se um de nós, em Jesus fez-Se menino e a
abertura a Deus na fé, que alimenta a esperança, manifesta-se na proximidade
amorosa aos mais pequeninos e mais frágeis. Caridade, fé e esperança: estão todas
presentes nas obras de misericórdia, tanto espirituais como corporais, que
redescobrimos durante o recente Jubileu Extraordinário.
Mas os evangelistas detêm-se também sobre a responsabilidade de quem vai
contra a misericórdia: «Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem
em Mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o
lançassem nas profundezas do mar» (Mt 18, 6; cf. Mc 9, 42; Lc 17, 2). Como não
pensar a esta severa advertência quando consideramos a exploração feita por
pessoas sem escrúpulos a dano de tantas meninas e tantos meninos encaminhados
para a prostituição ou sorvido no giro da pornografia, feitos escravos do trabalho
infantil ou alistados como soldados, envolvidos em tráficos de drogas e outras
formas de delinquência, forçados por conflitos e perseguições a fugir, com o risco
de se encontrarem sozinhos e abandonados?
Assim, por ocasião da ocorrência anual do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado,
sinto o dever de chamar a atenção para a realidade dos migrantes de menor idade,
especialmente os deixados sozinhos, pedindo a todos para cuidarem das crianças
que são três vezes mais vulneráveis – porque de menor idade, porque estrangeiras
e porque indefesas – quando, por vários motivos, são forçadas a viver longe da sua
terra natal e separadas do carinho familiar.
Hoje, as migrações deixaram de ser um fenómeno limitado a algumas áreas do
planeta, para tocar todos os continentes, assumindo cada vez mais as dimensões
dum problema mundial dramático. Não se trata apenas de pessoas à procura dum
trabalho digno ou de melhores condições de vida, mas também de homens e
mulheres, idosos e crianças, que são forçados a abandonar as suas casas com a
esperança de se salvar e encontrar paz e segurança noutro lugar. E os menores são
os primeiros a pagar o preço oneroso da emigração, provocada quase sempre pela
violência, a miséria e as condições ambientais, fatores estes a que se associa
também a globalização nos seus aspetos negativos. A corrida desenfreada ao lucro
rápido e fácil traz consigo também a propagação de chagas aberrantes como o
tráfico de crianças, a exploração e o abuso de menores e, em geral, a privação dos

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direitos inerentes à infância garantidos pela Convenção Internacional sobre os
Direitos da Infância.
Pela sua delicadeza particular, a idade infantil tem necessidades únicas e
irrenunciáveis. Em primeiro lugar, o direito a um ambiente familiar saudável e
protegido, onde possam crescer sob a guia e o exemplo dum pai e duma mãe; em
seguida, o direito-dever de receber uma educação adequada, principalmente na
família e também na escola, onde as crianças possam crescer como pessoas e
protagonistas do seu futuro próprio e da respetiva nação. De facto, em muitas
partes do mundo, ler, escrever e fazer os cálculos mais elementares ainda é um
privilégio de poucos. Além disso todos os menores têm direito de brincar e fazer
atividades recreativas; em suma, têm direito a ser criança.
Ora, de entre os migrantes, as crianças constituem o grupo mais vulnerável,

porque, enquanto assomam à vida, são invisíveis e sem voz: a precariedade priva-
as de documentos, escondendo-as aos olhos do mundo; a ausência de adultos, que

as acompanhem, impede que a sua voz se erga e faça ouvir. Assim, os menores
migrantes acabam facilmente nos níveis mais baixos da degradação humana, onde
a ilegalidade e a violência queimam numa única chama o futuro de demasiados
inocentes, enquanto a rede do abuso de menores é difícil de romper.
Como responder a esta realidade?
Em primeiro lugar, tornando-se consciente de que o fenómeno migratório não é
alheio à história da salvação; pelo contrário, faz parte dela. Relacionado com ele
está um mandamento de Deus: «Não usarás de violência contra o estrangeiro
residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egito»
(Ex 22, 20); «amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egito» (Dt
10, 19). Este fenómeno constitui um sinal dos tempos, um sinal que fala da obra
providencial de Deus na história e na comunidade humana tendo em vista a
comunhão universal. Embora sem ignorar as problemáticas e, frequentemente, os
dramas e as tragédias das migrações, bem como as dificuldades ligadas com o
acolhimento digno destas pessoas, a Igreja encoraja a reconhecer o desígnio de
Deus também neste fenómeno, com a certeza de que ninguém é estrangeiro na
comunidade cristã, que abraça «todas as nações, tribos, povos e língua» (Ap 7, 9).
Cada um é precioso – as pessoas são mais importantes do que as coisas – e o valor
de cada instituição mede-se pelo modo como trata a vida e a dignidade do ser
humano, sobretudo em condições de vulnerabilidade, como no caso dos migrantes
de menor idade.
Além disso, é preciso apostar na proteção, na integração e em soluções
duradouras.
Em primeiro lugar, trata-se de adotar todas as medidas possíveis para garantir
proteção e defesa aos menores migrantes, porque estes, «com frequência, acabam
na estrada deixados a si mesmos e à mercê de exploradores sem escrúpulos que,
muitas vezes, os transformam em objeto de violência física, moral e sexual» (Bento
XVI, Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiadode 2008).
Aliás a linha divisória entre migração e tráfico pode tornar-se às vezes muito sutil.
Há muitos fatores que contribuem para criar um estado de vulnerabilidade nos
migrantes, especialmente nos menores: a indigência e a falta de meios de
sobrevivência – a que se vêm juntar expectativas irreais inculcadas pelos meios de
comunicação –; o baixo nível de alfabetização; o desconhecimento das leis, da
cultura e, frequentemente, da língua dos países que os acolhem. Tudo isto torna-

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os, física e psicologicamente, dependentes. Mas o incentivo mais forte para a
exploração e o abuso das crianças é a demanda. Se não se encontra um modo de
intervir com maior rigor e eficácia contra os exploradores, não será possível acabar
com as inúmeras formas de escravidão de que são vítimas os menores.
Por isso, é preciso que os imigrantes, precisamente para o bem dos seus filhos,
colaborem sempre mais estreitamente com as comunidades que os recebem.
Olhamos, com muita gratidão, para os organismos e instituições, eclesiais e civis,
que, com grande esforço, oferecem tempo e recursos para proteger os menores das
mais variadas formas de abuso. É importante que se implementem colaborações
cada vez mais eficazes e incisivas, fundadas não só na troca de informações, mas
também no fortalecimento de redes capazes de assegurar intervenções tempestivas
e capilares. Isto sem subestimar que a força extraordinária das comunidades
eclesiais se revela sobretudo quando há unidade de oração e comunhão na
fraternidade.
Em segundo lugar, é preciso trabalhar pela integração das crianças e adolescentes
migrantes. Eles dependem em tudo da comunidade dos adultos e, com muita
frequência, a escassez de recursos financeiros torna-se impedimento à adoção de
adequadas políticas de acolhimento, assistência e inclusão. Consequentemente, em
vez de favorecer a inserção social dos menores migrantes, ou programas de
repatriamento seguro e assistido, procura-se apenas impedir a sua entrada,
favorecendo assim o recurso a redes ilegais; ou então, são reenviados para o seu
país de origem, sem antes se assegurar de que tal corresponda a seu «interesse
superior» efetivo.
A condição dos migrantes de menor idade é ainda mais grave quando se encontram
em situação irregular ou quando estão ao serviço da criminalidade organizada.
Nestes casos, vêem-se muitas vezes destinados a centros de detenção. De facto,
não é raro acabarem presos e, por não terem dinheiro para pagar a fiança ou a
viagem de regresso, podem ficar reclusos por longos períodos, expostos a abusos e
violências de vário género. Em tais casos, o direito de os Estados gerirem os fluxos
migratórios e salvaguardarem o bem comum nacional deve conjugar-se com o
dever de resolver e regularizar a posição dos migrantes de menor idade, no pleno
respeito da sua dignidade e procurando ir ao encontro das suas exigências, quando
estão sozinhos, mas também das exigências de seus pais, para bem de todo o
núcleo familiar.
Fundamental é ainda a adoção de procedimentos nacionais adequados e de planos
de cooperação concordados entre os países de origem e de acolhimento, tendo em
vista a eliminação das causas da emigração forçada dos menores.
Em terceiro lugar, dirijo a todos um sentido apelo para que se busquem e adotem
soluções duradouras. Tratando-se de um fenómeno complexo, a questão dos
migrantes de menor idade deve ser enfrentada na raiz. Guerras, violações dos
direitos humanos, corrupção, pobreza, desequilíbrios e desastres ambientais fazem
parte das causas do problema. As crianças são as primeiras a sofrer com isso,
suportando às vezes torturas e violências corporais, juntamente com as morais e
psíquicas, deixando nelas marcas quase sempre indeléveis.
Por isso, é absolutamente necessário enfrentar, nos países de origem, as causas
que provocam as migrações. Isto requer, como primeiro passo, o esforço de toda a
Comunidade Internacional para extinguir os conflitos e as violências que
constringem as pessoas a fugir. Além disso, impõe-se uma visão clarividente, capaz

270
de prever programas adequados para as áreas atingidas pelas mais graves
injustiças e instabilidades, para que se garanta a todos o acesso ao autêntico
desenvolvimento que promova o bem de meninos e meninas, esperanças da
humanidade.
Por fim, desejo dirigir-vos uma palavra, a vós que caminhais ao lado de crianças e
adolescentes pelas vias da emigração: eles precisam da vossa ajuda preciosa; e
também a Igreja tem necessidade de vós e apoia-vos no serviço generoso que
prestais. Não vos canseis de viver, com coragem, o bom testemunho do Evangelho,
que vos chama a reconhecer e acolher o Senhor Jesus presente nos mais pequenos
e vulneráveis.
Confio todos os menores migrantes, as suas famílias, as suas comunidades e vós
que os seguis de perto à proteção da Sagrada Família de Nazaré, para que vele por
cada um e a todos acompanhe no caminho; e, à minha oração, uno a Bênção
Apostólica.