11 Janeiro 2016 | Discurso do Santo Padre

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO AO CORPO DIPLOMÁTICO ACREDITADO JUNTO DA SANTA SÉ PARA AS FELICITAÇÕES DE BONS VOTOS

Sala Régia

Queridos Embaixadores!
Um espírito individualista é terreno fértil para medrar aquele sentido de indiferença
para com o próximo, que leva a tratá-lo como mero objecto de comércio, que
impele a ignorar a humanidade dos outros e acaba por tornar as pessoas medrosas
e cínicas. Porventura não são estes os sentimentos que muitas vezes nos assaltam
à vista dos pobres, dos marginalizados, dos últimos da sociedade? E são tantos os
últimos na nossa sociedade! Dentre eles, penso sobretudo nos migrantes, com o
peso de dificuldades e tribulações que enfrentam diariamente à procura, por vezes
desesperada, dum lugar onde viver em paz e com dignidade.
Por isso, hoje, queria deter-me a reflectir convosco sobre a grave emergência
migratória que temos estado a enfrentar, para discernir as suas causas,
perspectivar soluções, vencer o medo que inevitavelmente acompanha um
fenómeno assim grande e impressionante, que, durante o ano de 2015, interessou
sobretudo a Europa, mas também várias regiões da Ásia e o Norte e Centro da
América.
«Tem coragem, não tremas, porque o Senhor, teu Deus, estará contigo para onde
quer que fores» (Js 1, 9). É a promessa feita por Deus a Josué, que mostra como o
Senhor acompanha cada pessoa, sobretudo quem vive numa situação de
vulnerabilidade como esta de quem procura refúgio num país estrangeiro. Na
verdade, toda a Bíblia nos conta a história duma humanidade a caminho, pois é
conatural ao homem estar em movimento. A sua história é feita de muitas
migrações, às vezes amadurecidas como consciência do direito a uma livre escolha,
mas frequentemente ditadas por circunstâncias externas. Do desterro do paraíso
terreal até Abraão em marcha para a terra prometida, da história do Êxodo até à
deportação para Babilónia, a Sagrada Escritura narra incómodos e sofrimentos,
desejos e esperanças, que são comuns aos de centenas de milhares de pessoas em
marcha nos nossos dias, com a mesma determinação de Moisés de alcançar uma
terra onde corra «leite e mel» (cf. Ex 3, 17), onde possam viver livres e em paz.[…]
[…] Como então, ouvimos a voz de Jacob que – tendo ouvido dizer que havia trigo
à venda no Egipto – diz aos seus filhos: «Ide lá comprá-lo, para nós continuarmos
vivos e não morrermos» (Gn 42, 2). É a voz daqueles que fogem da miséria
extrema, sem possibilidades de alimentar a família ou ter acesso aos cuidados
médicos e à instrução, fogem da degradação sem perspectivas de qualquer
progresso ou mesmo por causa das alterações climáticas e de condições climáticas
extremas. Sabe-se que, infelizmente, a fome é ainda uma das chagas mais graves
do nosso mundo, com milhões de crianças que morrem anualmente por causa dela.
É triste, porém, constatar que muitas vezes estes migrantes não se enquadram nos
sistemas de protecção baseados nos acordos internacionais. […]

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[…] Infelizmente, hoje como então, ouvimos a voz de Judá sugerir que se venda o
próprio irmão (cf. Gn 37, 26-27). É a arrogância dos poderosos que
instrumentalizam os fracos, reduzindo-os a objectos para fins egoístas ou por
cálculos estratégicos e políticos. Onde é impossível uma migração regular, os
migrantes vêem-se muitas vezes forçados a tomar a opção de se dirigirem a quem
pratica o tráfico ou o contrabando de seres humanos, embora estejam em grande
parte cientes do perigo de perder, durante o percurso, os bens, a dignidade e até
mesmo a vida. Nesta perspectiva, renovo uma vez mais o apelo a deter o tráfico de
pessoas, que mercantiliza os seres humanos, especialmente os mais fracos e
indefesos. Nas nossas mentes e nos nossos corações, permanecerão
indelevelmente gravadas as imagens das crianças mortas no mar, vítimas dos
homens sem escrúpulos e da inclemência da natureza. Depois, quem sobrevive e
chega a um país que o acolhe leva consigo indelevelmente as cicatrizes profundas
destas experiências, além das relacionadas com os horrores que sempre
acompanham guerras e violências.
Como então, também hoje se ouve o Anjo repetir: «Levanta-te, toma o menino e
sua mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise» (Mt 2, 13). É a voz
escutada pelos inúmeros migrantes que nunca deixariam o seu país se, a isso
mesmo, não fossem constrangidos. Entre eles, há numerosos cristãos que, no
decurso dos últimos anos, têm abandonado de forma cada vez mais maciça as suas
terras, onde habitaram desde as origens do cristianismo.[…]
[…] Desde há muito tempo que se poderia ter enfrentado grande parte das causas
das migrações; e, deste modo, teria sido possível prevenir tantas desgraças ou,
pelo menos, mitigar as suas consequências mais atrozes. E hoje, antes que seja
tarde demais, muito se pode fazer para impedir as tragédias e construir a paz. Mas
isto significaria pôr em discussão hábitos e práticas consolidadas, a começar pelas
problemáticas relacionadas com o comércio dos armamentos, até ao problema da
conservação de matérias-primas e energia, aos investimentos, às políticas de
financiamento e apoio ao desenvolvimento, até à grave chaga da corrupção. Além
disso, devemos estar cientes da necessidade que há, em tema de migração, de
estabelecer projectos de médio e longo prazo que ultrapassem a resposta de
emergência; deveriam ajudar realmente à integração dos migrantes nos países de
acolhimento e, ao mesmo tempo, favorecer o desenvolvimento dos países de
origem com políticas solidárias, mas sem condicionar as ajudas a estratégias e
práticas ideologicamente alheias ou contrárias às culturas dos povos a que se
destinam.
Sem esquecer outras situações dramáticas – nomeadamente a que se vive na
fronteira entre o México e os Estados Unidos da América, que tocarei ao de leve
quando for a Ciudad Juárez no próximo mês –, gostaria de dedicar um pensamento
especial à Europa. Na verdade, ao longo do ano passado, viu-se afectada por um
fluxo impressionante de refugiados (tendo muitos deles encontrado a morte na
tentativa de a alcançar), que não tem precedentes na sua história recente, nem
mesmo no final da II Guerra Mundial. Muitos migrantes, originários da Ásia e da
África, vêem na Europa um ponto de referência por princípios, como a igualdade
perante a lei, e valores inscritos na própria natureza de cada ser humano, como a
inviolabilidade da dignidade e da igualdade de cada pessoa, o amor ao próximo sem

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distinção de origem nem de raça, a liberdade de consciência e a solidariedade com
o seu semelhante.
Todavia estes desembarques maciços nas costas do Velho Continente parecem
fazer vacilar o sistema de acolhimento laboriosamente construído sobre as cinzas
do segundo conflito mundial, que constitui ainda um farol de humanidade a servir
de referência. Perante a imensidão dos fluxos e os problemas inevitavelmente
relacionados, surgiram muitas dúvidas sobre as reais possibilidades de recepção e
adaptação das pessoas, sobre a mudança do meio cultural e social dos países de
acolhimento, bem como a redefinição de alguns equilíbrios geopolíticos regionais.
Relevantes são igualmente os temores pela segurança, exacerbados
desmedidamente pela difusa ameaça do terrorismo internacional. A vaga migratória
actual parece minar as bases daquele «espírito humanista» que a Europa ama e
defende desde sempre.[6] Mas não se pode dar ao luxo de perder os valores e os
princípios de humanidade, de respeito pela dignidade de cada pessoa, de
subsidiariedade e de mútua solidariedade, mesmo que, em alguns momentos da
história, possam constituir um fardo difícil de levar. Por isso, desejo reiterar a
minha convicção de que a Europa, ajudada pelo seu grande património cultural e
religioso, possui os instrumentos para defender a centralidade da pessoa humana e
encontrar o justo equilíbrio entre estes dois deveres: o dever moral de tutelar os
direitos dos seus cidadãos e o dever de garantir a assistência e o acolhimento dos
migrantes.[7]
Ao mesmo tempo, sinto a necessidade de exprimir gratidão por todas as iniciativas
tomadas para favorecer uma recepção digna das pessoas, nomeadamente o Fundo
Migrantes e Refugiados do Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa, e
também pelo empenhamento dos países que demonstraram uma generosa atitude
de partilha; refiro-me, antes de mais nada, às nações vizinhas da Síria, que deram
respostas imediatas de assistência e acolhimento, sobretudo o Líbano, onde os
refugiados constituem um quarto da população total, e a Jordânia, que não fechou
as fronteiras, apesar de abrigar já centenas de milhares de refugiados. De igual
modo, não devemos esquecer os esforços doutros países empenhados na
vanguarda, entre os quais se conta especialmente a Turquia e a Grécia. Desejo
expressar um agradecimento particular à Itália, cujo decidido empenho salvou
muitas vidas no Mediterrâneo e que ainda se ocupa no seu território dum grande
número de refugiados. Espero que o tradicional sentido de hospitalidade e
solidariedade que caracteriza o povo italiano não fique enfraquecido pelas
inevitáveis dificuldades do momento presente, mas, à luz de sua milenária tradição,
seja capaz de acolher e integrar a contribuição social, económica e cultural que os
migrantes possam prestar.
É importante não deixar sozinhas as nações que, na vanguarda, estão enfrentando
a situação actual de emergência, tornando-se igualmente indispensável dar início a
um diálogo franco e respeitoso entre todos os países implicados no problema –
países de origem, de trânsito ou de recepção – procurando, com maior audácia
criativa, soluções novas e sustentáveis. Realmente, na actual conjuntura, não se
pode pensar em soluções perseguidas de forma individualista por um Estado,
porque as consequências das opções de cada um recaem inevitavelmente sobre
toda a comunidade internacional. Com efeito, sabe-se que as migrações
constituirão uma pedra angular do futuro do mundo, mais do que o têm sido até
agora, e que as respostas só poderão ser fruto dum trabalho comum, que respeite

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a dignidade humana e os direitos das pessoas. A Agenda de Desenvolvimento,
adoptada em Setembro passado pelas Nações Unidas para os próximos 15 anos,
que aborda muitos dos problemas que impelem à migração, bem como outros
documentos da comunidade internacional visando gerir a questão migratória,
poderão encontrar uma aplicação coerente com as expectativas se souberem
colocar a pessoa no centro das decisões políticas a todos os níveis, olhando a
humanidade como uma única família e os homens como irmãos, no respeito pelas
diferenças e convicções de consciência de cada um.
Com efeito, ao abordar a questão migratória não se poderão negligenciar as
relativas implicações culturais, a começar pelas relacionadas com a pertença
religiosa. O extremismo e o fundamentalismo encontram terreno fértil não só numa
instrumentalização da religião para fins de poder, mas também no vazio de ideais e
na perda de identidade – inclusive religiosa – que contradistingue dramaticamente
o chamado Ocidente. De tal vazio nasce o medo que impele a ver o outro como um
perigo e um inimigo, a fechar-se em si mesmo, refugiando-se em posições
preconceituosas. Por isso o fenómeno migratório põe um sério interrogativo
cultural, ao qual não nos podemos eximir de responder. Assim o acolhimento pode
ser ocasião propícia para uma nova compreensão e abertura de horizonte, tanto
para quem é acolhido, que tem o dever de respeitar os valores, as tradições e as
leis da comunidade que o acolhe, como para esta última chamada a valorizar aquilo
que cada imigrante pode oferecer para benefício de toda a comunidade. Neste
contexto, a Santa Sé renova o seu compromisso de estabelecer, em campo
ecuménico e inter-religioso, um diálogo sincero e leal que, valorizando as
peculiaridades e a identidade própria de cada um, favoreça uma convivência
harmoniosa entre todas as componentes sociais. […]